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Membro da Comissão Central de Controlo do PCP e responsável pela Comissão para os Assuntos Económicos

O que este texto pretendia dizer está no fundamental dito e bem dito (pesem pormenores) por Carmo Afonso no artigo no Público de 26 de Abril e (estranho que pareça) por Pacheco Pereira no artigo de 27 de Abril do mesmo jornal. Pode afirmar-se que me tiraram as palavras da caneta na resposta à questão: passou a direita a gostar do 25 de Abril? E esse amor está traduzido na sua adesão às comemorações populares? Há, no entanto, um aspecto da história das comemorações do 25 de Abril no país ao longo de 49 anos que julgo merecer mais algum esclarecimento

A conversão da direita ao 25 de Abril é certamente um milagre, ou então efeito das alterações climáticas… Ver a direita de cabeça perdida por e para participar nas manifestações do 25 de Abril é coisa que não esperava ver nunca… E tenho as minhas razões. Durante 49 anos ao que sempre se assistiu foi ao seu completo alheamento à participação, quando não oposição, às manifestações populares do 25 de Abril promovidas por colectividades, sindicatos e outras entidades. Iniciativas que nunca se limitaram desde 1975 à de Lisboa na descida da Avenida, mas que sempre se realizaram, com formatos e dimensões muito diversas, por todo o país, nomeadamente nas capitais de distrito. Manifestações e festas que sempre tiveram o empenho e a presença das organizações do PCP e por vezes de outros partidos de esquerda! A direita, PSD e CDS, e de forma quase absoluta também o PS (à excepção de que desde o início subscreveu a convocatória das comemorações), nunca foram além de uma sessão solene da assembleia municipal do concelho. Por vezes conseguia-se uma ajuda monetária dos municípios dirigidos por esses partidos para os grupos musicais que animavam as festas. E viva o velho! Iniciativas que sempre também mereceram – e continuaram a merecer em 2024 – generalizadamente o total esquecimento e ocultação da generalidade (é obrigatório o pleonasmo!) dos grandes órgãos de comunicação social, jornais, rádios e televisões, que além de Lisboa, ainda conseguiam chegar ao Porto, e em anos de sorte contemplavam, com alguns segundos e linhas, Braga e Coimbra, dando inteira credibilidade ao dito «o que interessa é Lisboa tudo o resto é paisagem».

De repente, mesmo se o ano passado já houve uns afloramentos em Lisboa (certamente a pensar nos 50 anos que aí vinham) deu-lhes a febre do 25. Este ano tivemos a IL, a JSD, todas gaiteiras no fim do desfile em Lisboa, Aguiar Branco, Presidente da Assembleia da República e deputado do PSD, o Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Carlos Moedas (mesmo só querendo um «25 de Abril moderado» a culminar no 25 de Novembro!) também a descerem a Avenida da Liberdade… Muito bem! Muito bem!

O que desmonta o charivari do ano passado em torno dessa participação quando reclamavam: “O 25 de Abril é de todos”! O que levou muita gente de boa fé a questionar-se: mas quem os proibiu de participar!? De realizar as manifestações e desfiles que entendessem? Certamente não estariam zangados por a Comissão que há décadas organiza o desfile não lhes abrir as portas por pensar no absurdo de convidar com um venham, venham que são bem-vindos mesmo que os vossos objectivos e vontades seja destruir a herança 25 de Abril.

Será que a desfiguração do 25 de Abril, submetida a tratos de polé pelos revisionistas da história, lhes mudou as perspectivas sobre o importante acontecimento histórico? Será que tal participação é a contrapartida que julgam necessária para fazer do golpe contra-revolucionário do 25 de Novembro o verdadeiro 25 de Abril, como decorre da verborreia do PSD (ver a conversa de Carlos Moedas), IL, CDS e Chega na Assembleia da República? Mas quem é que os tem impedido de fazer grandes manifestações pelo 25 de Novembro?

Santa hipocrisia! A sua valorização do 25 de Abril hoje vale o que disseram das manifestações comemorativas em Abril de 2020, com o país assolado pelo Covid! De facto pareceu, então, que só perante a pandemia descobriram que Abril não se devia comemorar. Mas não. Não podendo impedir a invocação do 25 Abril, há muito que se atiravam às cerimónias, oficiais e não oficiais. Às da Assembleia da República, às da Avenida da Liberdade, às de todas as ruas e praças do país. Depois de 1974 nunca mais precisaram de fazer de conta. Não gostam de rituais (os ritualistas) e mostraram-se preocupados com a criatividade das comemorações das datas históricas do país. Tanto que, aproveitando a presença da troika, os patrioteiros liquidaram duas delas: 5 de Outubro e 1.º de Dezembro, não por acaso as datas da implantação da República e da Restauração da Independência. E o 25 de Abril foi por um triz.. mas temeram a continuidade das comemorações mesmo sem feriado, como sucedeu com o 1.º de Maio durante o fascismo. Não gostam dos cravos, das palavras de ordem, da música e da poesia na rua. Não gostam de ver portugueses em festa com a festa do país de Abril. Não, não gostam. Não gostam de Abril nem das suas obras. Do SNS. Da Escola Pública. Da Constituição da República. Dos sindicatos e do que ainda resta dos direitos dos trabalhadores. Do direito a manifestar alegria, júbilo, vontade de lutar e resistir por Abril. Não, não gostam. Faz-lhes comichão.

Do que eles gostavam mesmo era que se fizesse o que o inominável Milhazes propôs nesse ano de 2020: comemorar Abril em Novembro. O que agora, tendo direitos de autor, é replicado pelo PSD, IL, CDS e Chega. O vírus foi uma oportunidade de oiro. Não sabendo o que dizer – não ia dizer bem do SNS! – o CDS descobriu a pólvora: que tal comemorar o 25, não comemorando!? A partir daí foi sempre a facturar, saiu-lhe o euromilhões. E valeu tudo. A pena que eles tiveram dos portugueses confinados em casa sem puderem comemorar! Enquanto aqueles políticos se regalavam nas cadeiras de São Bento.

O chorrilho foi o que se sabe. Não houve cão nem gato que ficasse calado. Recorde-se: “Deus não é feirão mas ajunta o gado”.

Notáveis foram os escritos do historiador Rui Ramos, patrão do Observador. De forma delirante, considerou «não se trata de comemorar o 25 de Abril. Trata-se de arranjar mais um pretexto para provar que os que não estão com a esquerda não estão com o 25 de Abril, e portanto, não estão com a democracia». Mas ainda mais extraordinário «o 25 de Abril não foi da esquerda”! Foi do CDS e do PSD, pois Freitas do Amaral elaborou com Amaro da Costa o programa do Governo provisório; e Sá Carneiro tornou-se o braço direito do primeiro-ministro Palma Carlos”! E quando se pensava que não era possível ir mais longe, eis que RR, noutro escrito da mesma data, explode: “As eleições de 25 de Abril de 1975 criaram uma legitimidade eleitoral que acabou por corroer a legitimidade revolucionária e o socialismo receitado pela Constituição”. Não se percebe bem (mas não deve ser para perceber): se o socialismo foi corroído, como é que a Constituição aprovada em Abril de 1976 receitava o socialismo?

Notáveis as catilinárias a gregos e a troianos de António Barreto, profeta do latifúndio. Esbracejando à esquerda e à direita deu um nó cego e caiu espavorido nos braços da direita, onde há muitas décadas ronrona. Todos sabemos que não é de esquerda nem de direita, antes pelo contrário. Rigorosamente a meio, porque dele é o reino dos céus, inefável pensamento, impoluta voz, fio de prumo da ética política, faz de conta que malhando assim ninguém sabe de que cor se pinta o ser reaccionário e anti-comunista em que se transformou. Ninguém enxerga o vesgo e brutal ódio com que olha para a história de Abril. Poderá dizer as maiores monstruosidades do mundo que haverá sempre um Bonifácio a apajar o seu “génio”. As da sua crónica de então sobre a polémica foram uma gota no seu oceano de mostrengos. Manholas, simulou bater em toda a gente para ocultar o ataque concentrado nas comemorações de Abril. Não apenas desse do ano do Covid. Mas a todas, de todos, quantos anos leva Abril. Arrepiou-se com o “absurdo que é o de ver todos os órgãos do Estado, os seus partidos e as suas instituições comemorarem, em romagem de saudade ou romaria festiva, a revolução de 25 de Abril!” Fez comparações: “A lembrar os anciãos do 5 de Outubro ou os decrépitos do 28 de Maio!” Vituperou: “Verdade é que a tolice e a inutilidade destas celebrações só são comparáveis à histeria daqueles que as atacam”. Ridicularizou: “As comemorações em miniatura e com cenografia de afastamento social são tão ridículas que não deveriam despertar mais que desdém e piedade”. Não resistiu: “É espectáculo inesperado ver socialistas e comunistas, verdadeiros bolchevistas, reclamar o direito de levar a cabo a liturgia democrática e o dever da República de realizar as comemorações celebrativas (…)”. Caluniou: “As comemorações do 25 de Abril são obsoletas. Mas são inocentes e não prejudicam ninguém, a não ser a democracia”. Mentiu e insultou: “Realizar as comemorações do 25 de Abril em quarentena depois de proibir funerais e baptizados, aulas e cinemas, missas e jantares, concertos e velórios, é simplesmente ridículo, revela políticos inseguros, pobres diabos novos ricos da política (…)”.

Atreveu-se mesmo a “Recordar antigos revolucionários que, em seu tempo, consideravam os republicanos das romagens do 5 de Outubro uns patetas impotentes que pouco mais valiam do que discursos vácuos e ramos de flores nos cemitérios… Vê-los hoje a exigir celebração dá vontade de sorrir…”. Mas mais depressa se apanha um mentiroso… porque o sociólogo estava a ver-se ao espelho, “radical pequeno-burguês de fachada socialista”, que assim olhavam para essas lutas. De facto, insultou todos quanto em tempos sombrios se sujeitaram às cargas policiais e à marcação dos esbirros da PIDE para afirmar o direito à manifestação, saudando nas comemorações da República a liberdade e a democracia, recusando a ditadura e o fascismo. E a olhar para Abril. Que chegou, tarde, mas chegou.

Mas para quê gastar cera com ruins defuntos? Não há volta a dar: eles não gostam do 25 de Abril, e pronto. Eles não gostam, coerentemente, das comemorações do 25 de Abril.

“Expresso”, 29 de Abril de 2024