O mun­dial de fu­tebol a de­correr no Catar teve o mé­rito de pôr a rolar, fora das quatro li­nhas dos es­tá­dios de fu­tebol, uma ava­lanche de de­nún­cias sobre as cri­mi­nosas con­di­ções de tra­balho e de vida dos mi­grantes que er­gueram as es­tru­turas onde de­correm as com­pe­ti­ções.

O total des­res­peito pelos di­reitos hu­manos, que quase nada dis­tingue da es­cra­va­tura, veio à tona através dos media que no fre­nesim de ca­tivar au­di­ên­cias «des­co­briram» a no­tícia da ex­plo­ração que há muito uns quantos, poucos, vi­nham de­nun­ci­ando.

Mais vale tarde do que nunca, pois como qual­quer aprendiz de jor­na­lista deve saber, no­tícia não é só (nem so­bre­tudo?) o que é novo, mas o que tem in­te­resse pú­blico, que é o que lhe dá ac­tu­a­li­dade.

Os os mi­lhares de tra­ba­lha­dores da Índia, Pa­quistão, Nepal, Ban­gla­desh e Sri Lanka que se­gundo uma in­ves­ti­gação do jornal bri­tâ­nico The Guar­dian mor­reram no Catar desde que o país foi es­co­lhido para re­ceber o mun­dial de fu­tebol, tor­naram-se no­tícia a tí­tulo pós­tumo, la­men­ta­vel­mente, mas os fa­mi­li­ares desta For­gotten Team (Equipa Es­que­cida), como lhe chamou a Am­nistia In­ter­na­ci­onal, devem ser com­pen­sados, tal como im­porta ga­rantir que, no fu­turo, os di­reitos dos tra­ba­lha­dores sejam res­pei­tados. Di­versas or­ga­ni­za­ções ape­laram à FIFA para que iguale, pelo menos, os 440 mi­lhões de dó­lares que dis­tribui em pré­mios no mun­dial na cri­ação de um fundo para o efeito, mas o pre­si­dente da fe­de­ração in­ter­na­ci­onal, Gi­anni In­fan­tino, não se mos­trou sen­si­bi­li­zado.

A 4 de No­vembro, em carta às 32 se­lec­ções na­ci­o­nais con­cor­rentes no mun­dial deste ano, instou-as a «con­cen­trarem-se no fu­tebol» e a dei­xarem de lado as pre­o­cu­pa­ções com os di­reitos hu­manos. Na vés­pera do início do mun­dial, In­fan­tino deu uma con­fe­rência de im­prensa, em Doha, em que ex­plicou a sua po­sição de forma muito clara: «Não sig­ni­fica que não de­vamos apontar o que não fun­ciona – também aqui no Catar. É claro que há coisas que não fun­ci­onam e que devem ser abor­dadas. Mas estas li­ções de moral de um lado são apenas hi­po­crisia», disse.

E para quem não tenha per­ce­bido, acres­centou: «pelo que [os oci­den­tais] têm vindo a fazer há 3000 anos pelo mundo, devem pedir des­culpa nos pró­ximos 3000 anos antes de darem li­ções de moral.»

Na mouche! A cor­tina dos di­reitos hu­manos não es­conde o facto de o Catar ser hoje, por exemplo, o maior for­ne­cedor de gás para a Eu­ropa, con­trolar 10% da Bolsa de Va­lores de Lon­dres, 20% do ae­ro­porto de He­athrow e um quinto da Bri­tish Airways, deter po­si­ções im­por­tantes na Volkswagen e na Porsche, con­trolar 10% das ac­ções da Em­pire State Re­alty Trust, nos EUA, ser um dos mai­ores com­pra­dores de armas do Oci­dente.

No in­ter­valo do jogo com o Irão, os EUA anun­ci­aram venda de armas ao Qatar no mon­tante de mil mi­lhões de dó­lares. Era caso para pe­nálti, mas o ár­bitro es­tava dis­traído.

“Avante!”, 7 de Dezembro de 2022