(Este texto foi escrito a três mãos: por mim (o tio) e por Mia Couto (o pai e a mãe da coisa). Tal parentesco não decorre do sangue, como se poderia deduzir pelo nosso idêntico apelido, estabeleceu-se antes pelas palavras. Num destes dias, propus-me alcançar seus passos passeando pelo Estoril, no sentido de apurar, junto do escritor moçambicano, se havia algum inconveniente em alargar este laço familiar a outros eventuais parentes (leia-se, eventuais leitores).
«Não me importo nada», dizia ele, «as palavras pertencem apenas à Língua, e esta não tem dono – pertence, por igual, a todos os que a falam e a escrevem!» Afinal, lá concluímos, «a Língua é como a Água – é pertença da nossa família global»).
Fonte: ninho da água. A água nasce de ser plantada? Ou de pedra que se converte? Ninguém sabe, ninguém nunca viu. O parto da água não tem testemunha: esta aparece sempre depois. E, o depois, já é um ninho onde a água se constitui, emplumando-se ao modo de ser ave.
Assim, ao princípio, escuta-se apenas a água crescer em repuxos. Primeiro, é a liberdade à solta, na forma de uma gota que se desprende, ora do céu ou do ramo, ora da folha ou de algum beiral. Mais à frente é, já, uma pressa branca de frescura enchendo o ar de beleza. As suas asas transparentes descem, então, ao mundo e ao abrirem-se são os olhos do mundo. O alegre soar do imutável.
Para aprender o seu enigma os pássaros aproximam-se silenciosos, e o homem contempla-a querendo sentir toda a sua inocência. Por vezes, também irrompe na sua quietude. Entra nela e olha-se e abraça-a. E bebe-a para viver a paz da sua saciada sede. Mas é só em dias de sol que, do seu corpo de espuma, a plena luz emerge e faz reluzir, limpo de novo, a criança feliz e rei de tudo o que foi criado.
Quem procure a fonte que escute primeiro essa criança. Só depois rasteire os olhos entre a pedra e a erva. Deixe aí seu olhar pousado até que a alma se sinta molhada e mais que ensopada ou alagada: alaguada, como se diz em África, ou ensopalhada, como é costume dizer em Portugal. Cá ou lá, se verá então como a água a si mesma se enche, abrindo as margens, soltando suas asas. Aí, começa a viagem do rio sucessivo.
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