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“É a passagem de uma barcaça no Mékong”
Duras, Marguerite, 1984, O Amante
A Tia Europa sofre de declínio demográfico, não tem capacidade de renovar a sua população. Está, portanto, obrigada a continuar a receber milhões de imigrantes ao longo das próximas décadas, seja da África, dos diversos cantos da Ásia ou da América Latina. Esses milhões de seres humanos, que fazem os trabalhos que os filhos da Tia Europa não querem fazer, são fundamentais para o funcionamento da economia e das sociedades europeias.
Para os senhores do mando, da santa aliança Mercado & Nacionalismo, é uma maravilha, usam e abusam da chamada imigração ilegal, muito útil para, simultaneamente, puxar salários para baixo, aumentando os lucros e as rendas dos da massa e alimentar o discurso de ódio ao outro, ao estrangeiro que nos invade. Claro, para sossego da alma e paz do espírito, são vertidas lágrimas contra a imigração ilegal e feitas juras de amor ao próximo e de defesa da imigração legal e com direitos. Não podia ser de outro modo.
Pena é que, de onde a onde, o nosso luso-tropicalismo, mito da saudável convivência tuga com outros povos, seja confrontado com escravatura agrícola nos campos do sul ou com um novo tipo de alojamento local na capital, o famoso arrendamento “cama quente”, conceito trazido dos confins (asiáticos) do império ultramarino, o aluguer de uma cama por oito horas, o que possibilita acomodar, numa cama single, três seres humanos em vez de um, política de alojamento assaz vanguardista, tal a sua capacidade de eliminação do desperdício.
Ora, ao passo que na Tia Europa, por falta de indígenas de cabelo louro e olho azul, chegam em barda seres humanos de outras paragens, de outras culturas, em Portugal, não só chegam em barda seres humanos de outras paragens e de outras culturas como, ao contrário dos países do centro e norte da Europa, continuam a sair em força os autóctones, tanto os mais como os menos qualificados. Ou seja, o norte e o centro da Europa são países de imigração, Portugal é, simultaneamente, país de imigração e de emigração.
Que consequências vai ter esta situação de país-plataforma no nosso devir coletivo? Para além do afundamento económico de Portugal, como evoluirá a questão cultural lusa? Num tempo de debates identitários, de crise das identidades coletivas, qual barcaça vogando à deriva no imenso Mékong, como se vão trabalhar as identidades coletivas num país-plataforma? E a cultura e a língua portuguesa?
Questões de soberania que ficam no ar.
“Discurso Directo”, 14 de Abril de 2023