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É na­tural que um pro­cesso de re­visão cons­ti­tu­ci­onal sus­ci­tado pelo Chega pro­voque re­pulsa em todos quantos vêem na Cons­ti­tuição da Re­pú­blica Por­tu­guesa um ga­rante de di­reitos, de li­ber­dades e da pró­pria de­mo­cracia.

E não é para menos, pois a ex­trema-di­reita nunca es­condeu ao que vinha: quer re­fundaro re­gime e en­terrar a Cons­ti­tuição (que con­si­dera es­go­tada), não es­conde o ódio a Abril e atenta aber­ta­mente contra con­quistas ci­vi­li­za­ci­o­nais. No seu pro­jecto, ad­mite a prisão per­pétua e a cas­tração quí­mica, alarga a pos­si­bi­li­dade de ob­tenção e uti­li­zação de in­for­ma­ções pes­soais e fa­mi­li­ares de forma abu­siva ou con­trária à dig­ni­dade e da vi­o­lação de do­mi­cílio, cor­res­pon­dência e co­mu­ni­ca­ções, li­mita o di­reito de asilo e reduz o nú­mero de de­pu­tados (e, com ele, a pro­por­ci­o­na­li­dade). Mas se é pe­ri­goso des­va­lo­rizar estas pro­postas, não o é menos li­mi­tarmos a elas a nossa in­dig­nação e, so­bre­tudo, o nosso com­bate. É que o Chega não está so­zinho em muitas das aber­ra­ções que propõe e há ou­tras, com ori­gens di­versas e até con­ver­gên­cias alar­gadas: da pos­si­bi­li­dade de in­ter­na­mento com­pul­sivo de do­entes ao alar­ga­mento da missão das Forças Ar­madas pe­rante ame­aças in­ternas, pas­sando pela des­ca­rac­te­ri­zação do SNS e da Es­cola Pú­blica em favor dos in­te­resses pri­vados, uma forma de dar co­ber­tura (e es­tí­mulo) a um pro­cesso ver­go­nhoso que há muito está em curso.

E até isto não basta. De­fender a Cons­ti­tuição im­plica ainda uma atenção re­do­brada face a belas pa­la­vras e de­cla­ra­ções de pro­gres­sismo, tantas vezes usadas para es­conder ob­jec­tivos bem menos no­bres. Em todos os pro­cessos de re­visão an­te­ri­ores, aliás, houve de tudo isto: in­fla­madas juras de apego ao es­pí­rito e à letra do texto cons­ti­tu­ci­onal, pro­messas de me­lho­rias e ac­tu­a­li­za­ções (ci­rúr­gicas e muito mo­dernas, di­ziam-nos) e pro­postas de ar­re­piar. E de todos eles a Cons­ti­tuição saiu pior, os di­reitos e li­ber­dades fra­gi­li­zados e os po­de­rosos com alar­gado campo de acção: a ad­mis­si­bi­li­dade das pri­va­ti­za­ções, o apa­ga­mento da Re­forma Agrária, a eli­mi­nação da gra­tui­ti­dade dos cui­dados de saúde (que pas­saram a ten­den­ci­al­mente gra­tuitos, que já se viu o que sig­ni­fica), a ali­e­nação de par­celas de so­be­rania para a União Eu­ro­peia e a li­mi­tação do di­reito à greve foram graves golpes des­fe­ridos na Cons­ti­tuição – que, apesar disso, se mantém avan­çada e pro­gres­sista.

Não sa­bemos como vai ter­minar este pro­cesso de re­visão cons­ti­tu­ci­onal, que só existe porque PSD e PS o per­mi­tiram, caso con­trário seria apenas mais um fo­gacho da ex­trema-di­reita. Mas temos algo como ga­ran­tido: qual­quer al­te­ração será da res­pon­sa­bi­li­dade do PSD e so­bre­tudo do PS, pois nada pas­sará sem os seus votos con­ju­gados. Já a luta em de­fesa da Cons­ti­tuição é para con­ti­nuar. Na As­sem­bleia da Re­pú­blica e cá fora.

“Avante!”, 12 de Janeiro de 2023