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Uma amiga minha que assistiu à estreia, no Teatro Nacional de São João, da peça de teatro “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago, na versão cénica de Clàudia Cedó, andou todo o santo fim-de-semana a repetir um trecho do manual de leitura da dita:
“Porque foi que cegamos, Não sei, talvez um dia
se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga
o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso
que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que,
vendo, não veem.
A mulher do médico levantou-se e foi à janela.
Olhou para baixo, para a rua coberta de lixo
Para as pessoas que gritavam e cantavam. Depois
levantou a cabeça para o céu e vi-o todo branco,
Chegou a minha vez, pensou. O medo súbito fê-la
baixar os olhos A cidade ainda lá estava.”
De há uns anos a esta parte, temos assistido – mais ainda agora, com a consolidação das redes sociais como espaço de vida pública -, a uma fragmentação da CIDADE, concomitante com o crescendo da lógica grupal, tribal. Um tribalismo construído em torno de causas políticas, religiosas, culturais, geracionais. Autênticas seitas, tal é o grau de agressividade, de desprezo e de ódio a tudo que está para além da tribo, proporcional ao fervor e ligação à tribo e aos seus membros.
Vão-se esvaziando ou mesmo desaparecendo os espaços de interação entre camadas sociais, gerações, grupos. Com a segmentação de públicos, introduzida pela sociedade de consumo, vemos fenómeno idêntico na cultura e na comunicação social: os espaços a fecharem-se, os grupos a darem lugar às tribos, uma espécie de “individualização” do grupo relativamente à comunidade, parecendo a comunidade não mais do que um somatório de tribos em combate feroz.
Talvez seja útil recorrer ao Brasil (até porque pode ser a antecâmara do que aí vem), uma vez que parece ser característica das periferias do capitalismo a hipervalorização da internet e das redes sociais. Nas comparações internacionais, o Brasil bate recordes de número de horas diárias de internet e de horas nas redes sociais. O debate político – mais luta que debate -, tem nesse espaço público uma presença formidável. O que por lá vemos aponta claramente para o reforço do tribalismo, de clivagens sociais cada vez maiores, de promoção do ódio ao outro, ao diferente da tribo e a estigmatização de certos grupos sociais como a origem de todos os males da sociedade.
Como construir CIDADE em tempo de tribos e de aprofundamento do tribalismo? Talvez seja pela velha solução: foco nos problemas concretos das pessoas, na perceção dos seus problemas e no respeito pelo outro. Afinal não é isso a CIDADE, a pólis?
“Discurso Directo”, 16 de Dezembro de 2022