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Diz-se da In­gla­terra que é a mais an­tiga de­mo­cracia par­la­mentar do mundo. A afir­mação tornou-se um lugar comum, um clichê, que de tanto re­pe­tida é aceite como se ver­dade fosse.

A ba­derna po­lí­tica que se vive em terras de sua ma­jes­tade – só a mera exis­tência da mo­nar­quia é mo­tivo de re­flexão – após a de­missão for­çada de Boris Johnson, a es­colha de Liz Truss para chefe do go­verno e a sua de­missão 45 dias de­pois, não in­co­moda as ca­beças bem pen­santes nem as leva a ques­ti­onar um re­gime em que o des­tino da es­ma­ga­dora mai­oria da po­pu­lação está à mercê de uma elite que in­tegra o 1% dos mais ricos e que não faz a mais pá­lida ideia de como (sobre)vivem os seus con­ci­da­dãos.

O re­cente mas­sacre me­diá­tico a pro­pó­sito da morte e res­pec­tivas exé­quias fú­ne­bres de Isabel II, a que não faltou o luto na­ci­onal de­cre­tado por Mar­celo Re­belo de Sousa, é pa­ra­dig­má­tico da la­vagem ao cé­rebro a que es­tamos su­jeitos através de doses ma­ciças de de­sin­for­mação.

De­sin­for­mação tanto mais grave quanto se sabe que existe, e até está dis­po­nível, in­for­mação a sério. Exemplo disso foi o do­cu­men­tário «Versus: A Vida e os Filmes de Ken Loach», apre­sen­tado na úl­tima quinta-feira pela RTP2, ao final da noite, e ainda dis­po­nível em RTP Play.

«Quando fa­zemos filmes sobre a vida das pes­soas, a po­lí­tica é es­sen­cial», diz-nos Loach, su­bli­nhando que «é essa a es­sência do drama, do con­flito». A his­tória da obra de Loach, «o re­a­li­zador de es­querda mais sub­ver­sivo que este país co­nheceu», como o de­fine um amigo, é a his­tória da In­gla­terra es­con­dida pelos media. Filmes com pes­soas reais, lo­cais reais, pro­blemas reais, é isso que Loach faz, ex­pondo a face nua e crua da so­ci­e­dade e dos di­versos in­ter­ve­ni­entes. Oriundo da classe ope­rária, o re­a­li­zador in­tegra a mi­noria que teve opor­tu­ni­dade de pros­se­guir os es­tudos, cons­ci­ente da exis­tência de dois mundos onde uns poucos ditam as re­gras. Em Ox­ford co­nhece a elite que irá ser a classe di­ri­gente, per­cebe que nunca será ad­vo­gado e en­ve­reda pelo ci­nema. Des­cobre as duas forças mo­trizes da so­ci­e­dade, ca­pi­ta­lismo e tra­balho, e que são ini­migas. Os seus filmes re­flectem-no, com as ine­vi­tá­veis con­sequên­cias. A de­mo­crá­tica, in­de­pen­dente e isenta BBC re­cusa-lhe a apre­sen­tação de tra­ba­lhos en­co­men­dados por «im­pró­prios para emissão», a in­dús­tria do ci­nema idem: a luta de massas, as de­nún­cias das trai­ções po­lí­ticas e sin­di­cais, a bru­ta­li­dade po­li­cial não têm lugar na «mais an­tiga de­mo­cracia do mundo». «Não po­demos emitir isso», dizem a Loach. Es­teve 12 anos sem filmar por manter a sua in­te­gri­dade. Para ficar bem na fo­to­grafia, os que o cen­su­raram mos­tram hoje a sua obra, como é o caso da BBC. Pa­ra­fra­se­ando Loach, que aos 78 anos se auto-re­formou para voltar dois anos de­pois de­vido à vi­tória dos con­ser­va­dores, bas­tards (es­tu­pores)!

“Avante!”, 27 de Outubro de 2022