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«(…) E, se nos per­gun­tarem o que fa­zemos, po­demos res­ponder: «Nós lem­bramo-nos». É assim que, len­ta­mente, aca­ba­remos por ga­nhar a par­tida. E, um dia, lem­brar-nos-emos tão bem que cons­trui­remos a maior pá me­câ­nica da his­tória, ca­va­remos o maior tú­mulo de todos os tempos e en­ter­ra­remos a guerra.» As pa­la­vras de Granger, o homem que me­mo­rizou a Re­pú­blica, de Platão, em Fah­re­nheit 451, o in­qui­e­tante livro de ficção ci­en­tí­fica que em me­ados do sé­culo pas­sado de­nun­ciou o pe­rigo mortal que paira sobre a ci­vi­li­zação oci­dental, são um alento de es­pe­rança e um es­tí­mulo à re­sis­tência quando tudo pa­rece afundar-se à nossa volta.

No ro­mance, a morte da cul­tura cul­mina na des­truição das mentes, pri­meiro, e logo de­pois dos corpos, «até ao apo­ca­lipse de uma guerra in­sen­sata e in­com­pre­en­sível que apaga todas as ac­ções hu­manas», como a pro­pó­sito es­creveu Mário Hen­rique Leiria. Para re­sistir, é pre­ciso não es­quecer.

Lem­bremo-nos então.

A UE, apên­dice acé­falo do im­pe­ri­a­lismo norte-ame­ri­cano, ao invés de pro­curar so­lu­ções po­lí­ticas sus­cep­tí­veis de cons­truir a paz e re­solver a crise ener­gé­tica, en­ve­reda pelo ca­minho do abismo tra­çado pelos EUA. A ex­pli­cação é re­cor­rente: di­reitos hu­manos, va­lores oci­den­tais, de­mo­cracia.

Lem­bremos então que os EUA têm a maior taxa de en­car­ce­ra­mento cri­minal do mundo, com 2,2 mi­lhões de pes­soas presas e ou­tros 4,5 mi­lhões em li­ber­dade con­di­ci­onal (dados de 2017), sendo que a taxa de ho­mens ne­gros presos é quase seis vezes su­pe­rior à dos ho­mens brancos, dis­pa­ri­dade que se agrava ainda mais entre os jo­vens;

Que no «país da li­ber­dade» per­ma­nece em vigor a cláu­sula da 13.ª Emenda que em 1865 aboliu a es­cra­va­tura e o tra­balho es­cravo, «ex­cepto como pu­nição por crime», o que dá muito jeito ao sis­tema pri­si­onal, es­sen­ci­al­mente pri­vado, que aí tem uma re­serva de mão de obra for­çada (no pe­na­lizar é que está o ganho);

Que a de­mo­crá­tica pena de morte está em vigor em 29 es­tados, para já não falar das leis que re­tiram o di­reito de voto aos in­di­ví­duos con­de­nados cri­mi­nal­mente; das cri­anças pro­ces­sadas em tri­bu­nais cri­mi­nais para adultos; da prisão per­pétua im­posta a cerca de 1300 pes­soas por crimes co­me­tidos quando ainda eram me­nores de 18 anos; de em 2019 o ca­sa­mento in­fantil (antes dos 18 anos) per­ma­necer legal de al­guma forma em 48 es­tados; dos cerca de 40 mi­lhões de pes­soas que vivem na po­breza; do au­mento dos ata­ques su­pre­ma­cistas brancos na úl­tima dé­cada, em es­pe­cial desde 2016; de con­ti­nu­arem em Guan­tá­namo 31 ho­mens presos há mais de uma dé­cada, sem acu­sação e sem di­reito a um jul­ga­mento justo; das guerras em vá­rias partes do mundo…

Não po­demos es­quecer. Nós lem­bramo-nos.

“Avante!”, 13 de Outubro de 2022