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«Uma ví­bora en­trou na loja de um fer­reiro, pe­dindo ca­ri­dade às fer­ra­mentas. De­pois de re­ceber algo de todas, fal­tando só a lima, apro­ximou-se dela e su­plicou-lhe que lhe desse al­guma coisa.

«– Bem en­ga­nada estás – disse a lima – se crês que te darei al­guma coisa. Logo eu, que tenho o cos­tume, não de dar, mas sim de tomar algo de todos!

«Moral: Nunca deves es­perar obter algo de quem só tem vi­vido de tirar dos de­mais.»

A his­tória é atri­buída a Esopo, um es­cravo con­tador de his­tó­rias da Grécia An­tiga, pro­va­vel­mente de origem afri­cana, que viveu entre os sé­culos VII a.C. e VI a.C. e se eter­nizou através das suas fá­bulas trans­mi­tidas pela tra­dição oral, como «A Lebre e a Tar­ta­ruga» ou «A Ra­posa e as Uvas».

Menos co­nhe­cida, a fá­bula da «Ví­bora e da Lima» as­senta como uma luva aos tempos que correm, quando temos o Go­verno a es­co­lher o Dia In­ter­na­ci­onal da Ca­ri­dade (!) para anun­ciar o pa­cote de dois mil mi­lhões de euros com que pre­ten­sa­mente vai ajudar as fa­mí­lias a fazer face à su­bida da in­flação.

O bodo aos po­bres chegou em­bru­lhado em papel couché e muita banha da cobra, a es­ca­mo­tear as­pectos tão ele­men­tares como o facto de o au­mento dos preços e a des­cida do de­sem­prego se tra­du­zirem no avo­lumar das re­ceitas dos im­postos: até Julho, o erário ar­re­cadou mais cinco mil mi­lhões de euros, em re­lação ao ano pas­sado, do que os três mil mi­lhões de euros ini­ci­al­mente pre­vistos. Dados vindos a pú­blico dão conta de que o IRS rendeu mais 12%, o IRC 60% e o IVA 25%, donde se con­clui que há mais a en­trar do que a sair. Nada mau.

En­quanto isso, diz a Deco, o cesto de ali­mentos es­sen­ciais está já 206 euros mais caro do que em Fe­ve­reiro, re­a­li­dade tanto mais de­vas­ta­dora quando se sabe que mais de 50% das fa­mí­lias por­tu­guesas vive com menos de mil euros brutos por mês, a que acresce o brutal au­mento das taxas de juro com a con­se­quente in­ci­dência na pres­tação da casa.

Numa al­tura em que mais pre­ci­sá­vamos de jus­tiça ao invés de ca­ri­dade, es­miuça-se o pa­cote do Go­verno e des­cobre-se que a jus­tiça está au­sente e a ca­ri­dade é um em­buste. Que o digam os re­for­mados, em risco de serem es­bu­lhados do au­mento das pen­sões es­ti­pu­lado por lei, com a con­se­quente re­dução da base de cál­culo, a troco de uma ce­noura de meia pensão que, tal como o ‘bó­nus’ de cento e poucos euros às fa­mí­lias, con­voca a ges­tora de contas Isabel Jonet para con­tra­riar a «ten­dência na­tural [dos po­bres] para gastar o di­nheiro mal­gasto».

Num dis­curso de muita parra e pouca uva, sem uma me­dida de con­trolo de preços, au­mento de sa­lá­rios, tecto de rendas ou jus­tiça so­cial, o Go­verno faz ma­la­ba­rismos para tirar da car­tola a ilusão de que o re­tro­cesso é um avanço.

Esopo co­nhecia as con­sequên­cias: «Quem trai os amigos cava a pró­pria se­pul­tura».

“Avante!”, 15 de Setembro de 2022