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Mo Farah é uma das grandes fi­guras do atle­tismo mun­dial: nas Olim­píadas de Lon­dres (2012) e do Rio de Ja­neiro (2016) venceu as quatro me­da­lhas de ouro nas provas de 5000 e 10 000 me­tros, a que se somam mais seis tí­tulos mun­diais e cinco eu­ro­peus. Este pal­marés ex­tra­or­di­nário não só faz dele um dos mais bem su­ce­didos atletas bri­tâ­nicos como o me­lhor do mundo nestas dis­tân­cias. Pela ex­ce­lência do seu de­sem­penho des­por­tivo, foi ar­mado Sir pela Rainha Isabel II em 2017.

O que até há dias se sabia, ou jul­gava saber, do per­curso de Mo Farah cons­ti­tuía a com­bi­nação per­feita entre o ta­lento e de­ter­mi­nação do atleta e a plena in­te­gração na so­ci­e­dade bri­tâ­nica de uma fa­mília de re­fu­gi­ados da So­mália. Acon­tece que essa não era a his­tória ver­da­deira, como o pró­prio re­velou num do­cu­men­tário re­cente da BBC: a sua vida, a real, se em nada be­lisca a ex­cep­ci­o­na­li­dade da sua car­reira des­por­tiva, já não é tão abo­na­tória para o Es­tado que o aco­lheu – ou, me­lhor di­zendo, para o qual foi le­vado por redes de trá­fico hu­mano.

Nas­cido Hus­sein Abdi Kahin, Mo perdeu o pai muito novo, no con­flito que di­la­ce­rava a So­mália à en­trada da úl­tima dé­cada do sé­culo XX. Do Dji­buti, para onde es­capou com al­guns fa­mi­li­ares, rumou com apenas oito ou nove anos para o Reino Unido, para aí viver com pa­rentes. Pelo menos foi isso que lhe pro­me­teram, pois a re­a­li­dade foi outra: a iden­ti­dade falsa, o tra­balho do­més­tico for­çado, o corte com os seus, as ame­aças cons­tantes. E o medo, sempre o medo: Se queres comer, se queres voltar a ver a tua fa­mília, não digas nada. E Mo Farah não disse. Até agora.

Con­tudo, e à ex­cepção do final feliz, pos­sível pelas ca­pa­ci­dades e es­forço pró­prios mas também pela acção de um pro­fessor de Edu­cação Fí­sica com quem teve a sorte de se cruzar, esta não é uma his­tória in­di­vi­dual. Nos seus as­pectos mais de­su­manos, é par­ti­lhada por mi­lhões em todo o mundo, ins­tru­mentos des­car­tá­veis da tão lou­vada glo­ba­li­zação, da ma­xi­mi­zação do lucro de al­guns em­pre­en­de­dores de su­cesso, do im­pe­ri­a­lismo de re­corte ne­o­co­lo­nial (mal) dis­far­çado de in­ves­ti­mento es­tran­geiro ou in­ter­ven­ci­onismo hu­ma­ni­tário.

Por cá, ou­vimos falar há tempos das ex­plo­ra­ções agrí­colas em Ode­mira, das con­di­ções de­gra­dantes em que lá vivem e tra­ba­lham cen­tenas de imi­grantes, das ame­aças de que vão ví­timas – e não é só ali. É fre­quen­te­mente no­tícia a si­tu­ação de semi-es­cra­va­tura de ope­rá­rios por­tu­gueses em obras no Lu­xem­burgo, França ou Es­panha. Há pouco fi­cámos a saber que os pa­trões da Ho­te­laria re­clamam a cri­ação de «cor­re­dores de imi­grantes» para tra­ba­lhar no sector. A troco de quê e em que cir­cuns­tân­cias po­demos apenas tentar ima­ginar.

Sempre o en­godo, a ameaça, o medo – ex­pres­sões de um ca­pi­ta­lismo ago­ni­zante e, por isso, ainda mais agres­sivo. Até um dia!

“Avante!”, 4 de Agosto de 2022