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“Era uma vez  uma mula que ganhou fastio à palha, só tragava  pasto verde. O dono tentava tudo, mas nada, o diabo do bicho preferia a fome à palha. Numa derradeira tentativa colocou uns óculos verdes na mula. Desse dia em diante a mula passou a comer de tudo, tudo era verde.”

in “A mula dos óculos verdes e outras estórias” JORGINHO DE SANTO ANTÃO 

Faltavam palavras para o escrito mensal e, fortuna da vida, cruza-se comigo o Jorginho Vera Cruz, em tempos idos o bandido Leandro do filme da RTP que adaptou a obra “os flagelados do vento leste”, de Manuel Lopes, uma dedicatória às gentes da ilha de Santo Antão. Numa noite de rede social com tecnologia antiga, grogue e ponche sobre a mesa, numa casa de campo  entre canas de açúcar no vale de Paúl, perguntou o Jorginho: – Conhecem a estória da mula dos óculos verdes?

A conversa continuou noite adentro, em registo mais sério ou mais disparatado, mas ficaram as perguntas:

– Será que para os burros, palha seca sem óculos verdes é palha seca, com óculos verdes vira erva fresca?

-Será que para os burros deste mundo vale mais o que se vê do que o sabor, a substância, das coisas?

E mais estórias houve, o Jorginho é imparável: as descrições do Armindo e do Fidel sobre as agruras da vida e da falta de água no planalto norte, as aventuras da prima Francisca, enfermeira que requisitou, nos anos oitenta, para risota dos pares finórios da Praia,  duas mulas para levar os serviços de saúde da cidade de Porto Novo às povoações de Ribeira das Patas, Morrinho d’Égua, Tarrafal e Monte Trigo.

E o Jorginho prosseguia na sua arte, a arte de conversar, de ouvir o outro e de mostrar os outros, enfim, de ouvirmos a voz humana, neste caso não pela palavra escrita mas pela palavra dita.

Fim de conversa: o que é afinal a civilização?

“Discurso Directo”, 5 de Agosto de 2022