Se um destes dias nos vi­erem dizer que a Terra é plana, a Lua he­xa­gonal e o Sol um carro de fogo que corre no fir­ma­mento di­ri­gido por um ci­en­tista louco, não há mo­tivo para du­vidar, a menos que se queira fazer parte – vá de retro, sa­tanás – da es­cória des­crente das vir­tudes do sis­tema ca­pi­ta­lista e do re­gime dito de­mo­crá­tico que nos rege.

Na sua di­nâ­mica pró­pria da in­ces­sante busca de lucro e per­ma­nente acu­mu­lação de ri­quezas pode su­ceder, con­tin­gên­cias da vida, que o branco de ontem seja preto hoje, que ter­ro­ristas passem a com­ba­tentes da li­ber­dade, que a pre­ca­ri­e­dade seja afinal sinal de pros­pe­ri­dade, que o de­sem­prego sig­ni­fique jus­tiça so­cial, só para dar al­guns exem­plos, que a questão dá pano para mangas.

A mais re­cente re­vi­ra­volta – façam rufar os tam­bores, sff – é “Abaixo o CO2, viva o nu­clear!”.

Dito de outra forma, o nu­clear é verde, de­cidiu há dias o Par­la­mento Eu­ropeu, se­cun­dando uma pro­posta da Co­missão Eu­ro­peia para o clas­si­ficar como energia limpa ou sus­ten­tável, ale­ga­da­mente em nome da de­fesa do meio am­bi­ente. De uma pe­nada, Bru­xelas pro­mete pôr fim ao eterno de­bate sobre o nu­clear, sendo de es­perar para breve a cam­panha sobre os seus be­ne­fí­cios: a mai­oria dos re­ac­tores nu­cle­ares emite apenas vapor de água para a at­mos­fera, é lim­pinha, não enche os ares de dió­xido de car­bono, nem me­tano, nem ne­nhum dos gases po­lu­entes pro­vo­cados pelos com­bus­tí­veis fós­seis, e ainda por cima é ba­rata, pra­ti­ca­mente ines­go­tável e rende mi­lhões.

Nas ac­tuais cir­cuns­tân­cias de do­mínio desta tec­no­logia, in­cluindo no nosso país, o bu­sílis da questão, im­pos­sível de varrer para de­baixo do ta­pete, é o lixo. Pois é, o lixo pro­du­zido pela energia nu­clear é ex­tre­ma­mente pe­ri­goso para a saúde pú­blica e para o meio am­bi­ente, já que os re­sí­duos ra­di­o­ac­tivos são al­ta­mente po­lu­entes, mor­tais e levam mi­lhares de anos a de­gradar, o que torna a sua gestão par­ti­cu­lar­mente di­fícil e ar­ris­cada. E também as ques­tões de se­gu­rança, de que os aci­dentes re­gis­tados nas cen­trais de Three Mile Is­land nos Es­tados Unidos, Cher­nobyl na an­tiga União So­vié­tica ou Fu­kushima no Japão são apenas três exem­plos do que pode acon­tecer.

Nada que pa­reça per­turbar a se­nhora Von der Leyen e os seus pares, que nesta ca­mi­nhada “eco­ló­gica” também pas­saram al­forria ao gás na­tural, com­bus­tível fóssil que produz emis­sões de efeito es­tufa, re­con­ver­tido em energia limpa, verde que te quero verde….

Ao con­trário do que possa pa­recer não se trata de um de­lírio fruto da vaga de calor, nem um efeito da guerra na Ucrânia, de costas tão largas que “ex­plica” tudo. O pro­cesso vem de longe, como prova o caso francês: eleito pela pri­meira vez com a pro­messa de acabar com o nu­clear, Ma­cron pro­mete agora gastar mil mi­lhões de euros até 2030 em “ino­vação dis­rup­tiva” para pro­duzir energia ató­mica.

Quem não en­tender a ló­gica, ou é dal­tó­nico ou não per­cebe nada de po­lí­tica.

“Avante!”, 14 de Julho de 2022