As ima­gens são ter­rí­veis, cho­cantes, da­quelas que nunca se es­quece. Corpos sem vida ou mo­ri­bundos, às de­zenas, amon­to­ados e exan­gues. Ob­serva-os, a poucos me­tros, in­di­fe­rente, um con­tin­gente po­li­cial nu­me­roso e for­te­mente ar­mado.

O local é Mar­rocos, às portas do en­clave es­pa­nhol de Me­lilla, a poucas cen­tenas de qui­ló­me­tros da fron­teira por­tu­guesa. A data, 25 de Junho de 2022. O saldo, esse, é dra­má­tico, cerca de 40 mortos: es­pan­cados, uns, as­fi­xi­ados ou es­ma­gados, ou­tros.

A his­tória é brutal, mas não é iné­dita, longe disso. E conta-se em poucas pa­la­vras. Imi­grantes e re­que­rentes de asilo, na mai­oria sub­sa­ri­anos, ten­tavam en­trar em Me­lilla, quando foram cer­cados por forças de se­gu­rança mar­ro­quinas e es­pa­nholas. «Bru­ta­li­dade ex­trema», «uso des­pro­por­ci­o­nado da força», actos com­pa­rá­veis a «exe­cu­ções su­má­rias» foram al­gumas das ex­pres­sões uti­li­zadas para ca­rac­te­rizar o que ali se passou.

Apesar do horror, a coisa passou des­per­ce­bida na ge­ne­ra­li­dade da co­mu­ni­cação so­cial, tão rá­pida a des­co­brir (ou in­ventar) bar­ba­ri­dades nou­tras la­ti­tudes. E quase nada se ouviu da parte dos di­ri­gentes da União Eu­ro­peia e da NATO, os tais que nos úl­timos meses re­no­varam os seus votos de apego aos di­reitos hu­manos e à li­ber­dade e re­a­fir­maram uma e outra vez a su­pe­ri­o­ri­dade dos va­lores eu­ro­peus e do modo de vida oci­dental. A ex­cepção a este ge­ne­ra­li­zado si­lêncio veio do pri­meiro-mi­nistro es­pa­nhol, Pedro San­chéz… mas para elo­giar a acção con­ju­gada das duas po­lí­cias.

Não ad­mira. In­de­pen­den­te­mente dos agentes en­vol­vidos nos acon­te­ci­mentos, a res­pon­sa­bi­li­dade úl­tima pelo mas­sacre de Me­lilla, como já lhe chamam, é da União Eu­ro­peia e da sua con­cepção se­cu­ri­tária da Eu­ropa For­ta­leza: a elas se devem os mortos de Me­lilla e os mi­lhares do Me­di­ter­râneo, como também os muros da Hun­gria e da Po­lónia, os mer­cados de es­cravos na Líbia, os imensos campos na Grécia e na Tur­quia e os re­fu­gi­ados tra­fi­cados para fins la­bo­rais e se­xuais. Dramas quo­ti­di­anos sobre os quais sa­bemos pouco porque nada nos mos­tram.

Mas ve­remos ou­tras ima­gens por estes dias. De rostos sor­ri­dentes e vi­go­rosos apertos de mão, acom­pa­nhados por so­nantes dis­cursos. Na Ci­meira da NATO, que hoje ter­mina em Ma­drid, terão sido ditas muitas pa­la­vras, na mai­oria ocas, hi­pó­critas e de cir­cuns­tância, mas ne­nhuma di­ri­gida aos 40 de Me­lilla. Ali falou-se de armas, de blo­queios, de san­ções. Tratou-se de guerra e de do­mi­nação, mi­litar ou eco­nó­mica, das quais fu­giam pre­ci­sa­mente aqueles que se amon­to­aram, sem vida, junto a uma ve­dação no Norte de África.

Desta Ci­meira terá saído ainda o apro­fun­da­mento da «co­o­pe­ração» com a UE, cada vez mais – e as­su­mi­da­mente – o pilar eu­ropeu da NATO. Uma e outra são, na ver­dade, irmãs de sangue. Do sangue dos ou­tros.

“Avante!”, 30 de Junho de 2022