A de­mo­cracia é uma coisa muito elás­tica; ora es­tica, ora en­colhe, de acordo com as con­ve­ni­ên­cias dos po­deres ins­ti­tuídos. A Rússia, po­tência ca­pi­ta­lista de­sa­li­nhada, não cabe na­tu­ral­mente no con­ceito, e a guerra na Ucrânia só veio ar­redá-la mais um bo­ca­dinho. Pa­la­dina da de­mo­cracia, a UE, se­guindo as ori­en­ta­ções dos EUA, fla­gela a eco­nomia russa im­pondo san­ções, proíbe ór­gãos de in­for­mação «ali­nhados» com Mos­covo – todos os de­sa­li­nhados com Bru­xelas e Washington – e, ce­reja em cima do bolo, tenta li­vrar-se da de­pen­dência ener­gé­tica em re­lação àquele país.

Ini­ci­a­tivas di­plo­má­ticas para um acordo de paz, se existem, estão no se­gredo dos deuses. O que não é se­gredo ne­nhum é o acordo fir­mado a se­mana pas­sada pela se­nhora Von der Leyen, pre­si­dente da Co­missão Eu­ro­peia, para o «for­ne­ci­mento es­tável de gás na­tural à UE». E com quem? Com dois ex­po­entes da de­mo­cracia, na­tu­ral­mente: Is­rael e o Egipto.

Dei­xando de lado os as­pectos téc­nicos, re­giste-se a elas­ti­ci­dade do con­ceito tendo em con­si­de­ração que o gás ex­plo­rado por Is­rael se en­contra em águas que Te­la­vive con­si­dera es­tarem na sua Zona Eco­nó­mica Ex­clu­siva mas que… são dis­pu­tadas pelo Lí­bano, que em 2011 apre­sentou na ONU (De­creto 6433) um mapa ma­rí­timo in­cluindo nas suas águas a área em causa. A questão está num im­passe.

Por falar em Lí­bano, lem­bremos que se as­si­nala agora o 40.º ani­ver­sário da ope­ração Paz na Ga­li­leia, como Is­rael chamou à pri­meira guerra no Lí­bano, que se saldou por cen­tenas de mi­lhares de mortos, in­cluindo o mas­sacre de civis pa­les­tinos e li­ba­neses nos campos de re­fu­gi­ados de Sabra e Cha­tila – du­rante mais de 30 horas fa­lan­gistas li­ba­neses apoi­ados por Is­rael exe­cu­taram mu­lheres, cri­anças e ve­lhos, na sua mai­oria, para além de terem co­me­tido es­tu­pros, tor­turas e mu­ti­la­ções –, a des­truição de Bei­rute e a ocu­pação do Sul do Lí­bano por quase duas dé­cadas, de que ainda sub­sistem resquí­cios. Em 2020, o Exér­cito de Is­rael re­co­nheceu ofi­ci­al­mente a ocu­pação, clas­si­fi­cando-a de Zona de Se­gu­rança na Cam­panha do Lí­bano.

O mas­sacre de Sabra e Cha­tila foi qua­li­fi­cado de Acto de Ge­no­cídio por parte da As­sem­bleia Geral da ONU – re­so­lução 37/​123. Con­sequên­cias? Não houve.

Qua­renta anos de­pois con­tinua por res­ponder a per­gunta de Jean Genet em Quatro Horas em Cha­tila: «O que po­demos dizer às fa­mí­lias [das ví­timas] que par­tiram com Arafat, con­fi­ando nas pro­messas de Re­agan, Mit­ter­rand e Pe­rini, que lhes ga­ran­tiram que a po­pu­lação civil dos campos es­taria se­gura?»

Is­rael, re­corde-se, detém o re­corde de con­de­na­ções da ONU, 17, in­cluindo por ex­plorar os re­cursos na­tu­rais dos sí­rios nos Montes Golã, que ocupa desde 1967 e desde então su­jeitos à cons­trução de co­lo­natos ile­gais e ou­tras ac­ti­vi­dades. Con­sequên­cias? Zero.

É a van­tagem do elás­tico.

“Avante!”, 23 de Junho de 2022