“São propósitos maiores do projecto “Holograma da Casa na Área Metropolitana do Porto” abrir a programação da Casa da Música, nos 17 municípios da Área Metropolitana do Porto, a públicos sem práticas culturais, criando momentos emotivos que os vinculem à música mais erudita, através do acesso a uma programação muito variada e especialmente concebida para o feito.”
In Holograma da Casa na Área Metropolitana do Porto
Num destes dias encontrei, cuspindo chispas, um amigo que trabalha em Arouca há 25 anos, daqueles que na antiguidade clássica chamariam “treinador de gladiadores”, apesar de ser, assim, um indivíduo a botar pró intelectual. Chamou-me a um canto e, sacudindo um texto de divulgação da Casa da Música, perguntou, capciosamente: o que diabo são práticas culturais? A elite tripeira, filha dos “brasileiros de torna-viagem” ainda vive n’ “A Cidade e as Serras”? Isto não é a versão erudita daquela conversa de café dos do litoral, sempre que jogam com o F. C. Arouca, desdenham com “o diabo dos serranos”?
Perante tal assomo de fúria disse-lhe: Tem calma Meirinho (é o seu cognome). Não sejas assim, de facto a população de Arouca não tem acesso às práticas culturais que a Casa da Música oferece. Não o convenci. Se fosse isso, dizia ele, escreviam: sem as práticas culturais oferecidas pela Casa da Música. Não, o que é dito é: sem práticas culturais. Ora, essa conversa encerra dois erros de análise. Primeiro, perguntava o Meirinho: Quantas pessoas da cidade do Porto têm as tais práticas culturais? São, percentualmente, mais do que as de Arouca? Quantas pessoas dessas, se vivessem a 60 km do Porto, manteriam essas práticas culturais? Segundo, vociferava: O património, os museus, os cantas e cramóis, as filarmónicas não são práticas culturais? Há mais pessoas, percentualmente, no Porto, a praticar? Há mais pessoas, em percentagem, na cidade do Porto, a ler, do que em Arouca? Será que hoje a fronteira é entre a cidade e as serras ou a classe social de cada um? Será que os consumos culturais das classes populares da cidade do Porto são mais próximos dos da pequena burguesia dos concelhos periféricos da Área Metropolitana do Porto, Arouca incluído, ou dos das classes populares desses mesmos concelhos?
Sabes que mais, dizia-me aquele amestrador de brutos, no seu tom rude, as elites, sejam elas de onde forem, enfermam todas do mesmo mal, acham-se distintas do maralhal, sentem-se elevadas perante os demais. Ora a elevação é da cultura e não das pessoas. E a cultura manifesta-se de muitas formas, eruditas ou populares. Se leres o livrinho “Diário à filha”, daquela aventureira semianalfabeta do velho oeste americano, Martha Jane Canary-Burke, a Calamity Jane, encontras lá profundidade q.b. sobre a vida e a natureza humana. E sabes porquê? Porque aquelas parcas palavras são fruto de muita reflexão acumulada sobre o vivido.
Como é possível, usando as catalogações (neo)reacionárias do presente, uma mulher, batedora profissional do oeste americano, quase analfabeta, sem práticas culturais ter produzido aquilo. Será que no Missouri, onde nasceu em 1852, ou no Dakota do Sul, onde morreu em 1903, existiria um qualquer microclima cultural?
“Discurso Directo”, 9 de Junho de 2022