A ac­ti­vi­dade mo­tora exerce efeitos ex­tra­or­di­ná­rios sobre a es­tru­tu­ração do cé­rebro

Lusa

Quando se afirma que a si­tu­ação ac­tual do des­porto por­tu­guês de­pende fun­da­men­tal­mente da­quilo que se passa na es­cola, está a de­fender-se uma an­tiga ver­dade apre­sen­tada, desde sempre, como ex­pli­cação do me­díocre valor des­por­tivo do País no con­texto in­ter­na­ci­onal. No pre­sente não é pos­sível deixar de afirmar com plena con­vicção esta ver­dade, ainda que poucos sejam aqueles que pos­suem uma noção su­fi­ci­en­te­mente clara do que isto, de facto, quer dizer

O de­sen­vol­vi­mento global, in­te­gral e má­ximo das ca­pa­ci­dades da cri­ança (em es­pe­cial até aos 14 anos) de­pende das con­di­ções ge­rais da sua exis­tência so­cial. Cer­ta­mente que os fac­tores ge­né­ticos de­sem­pe­nham a sua função num grau ainda por de­ter­minar (uns au­tores de­fendem uma re­lação 40/​60 por cento, o que é uma sim­ples opi­nião), mas as evi­dên­cias ci­en­tí­ficas ob­tidas nos úl­timos 50 anos não per­mitem du­vidar de que a si­tu­ação so­cial cons­titui o ele­mento de­ter­mi­nante do pro­cesso de de­sen­vol­vi­mento in­fantil.

Neste devem in­te­grar-se as con­di­ções sócio-eco­nó­micas e cul­tu­rais de vida fa­mi­liar, a ri­queza (ou po­breza!) dos es­tí­mulos re­ce­bidos do ex­te­rior, o pro­cesso edu­ca­tivo in­formal (efeitos da TV, do grupo de amigos, etc.) e formal (acção do edu­cador na es­cola). Seja como for, se a acção da fa­mília é fun­da­mental, a acção edu­ca­tiva da es­cola é in­subs­ti­tuível. Para a grande mai­oria da po­pu­lação in­fantil, mas muito em es­pe­cial para aquela que vive com mai­ores di­fi­cul­dades, é esta que cons­titui não só a forma de­ci­siva de aqui­sição do saber, como também a única capaz de ga­rantir o acesso à cul­tura, en­ten­dida aqui como a ca­pa­ci­dade em com­pre­ender cri­ti­ca­mente aquilo que se passa à sua volta e de en­ri­que­ci­mento hu­ma­ni­zador.

No pre­sente, como sa­bemos, a es­cola está a ser posta em causa, quer quanto à aqui­sição do saber, quer quanto à es­tru­tu­ração de um pro­cesso crí­tico capaz de for­necer a com­pre­ensão da di­nâ­mica so­cial. Isto porque estas fi­na­li­dades se opõem aos in­te­resses da classe so­cial do­mi­nante. A aqui­sição da edu­cação in­te­gral, de­fen­dida há longo tempo, é um pe­rigo para quem detém um poder po­lí­tico e eco­nó­mico ge­rador de pro­fundas de­si­gual­dades, opondo-se a uma vi­vência de­mo­crá­tica plena, e pre­ci­sando apenas de uma mão de obra ele­men­tar­mente for­mada para res­ponder às ne­ces­si­dades do grande ca­pital .

A ex­tra­or­di­nária si­tu­ação da au­sência da edu­cação fí­sica das es­colas do 1.º Ciclo do En­sino Bá­sico/ CEB (an­tigas es­colas pri­má­rias) só pode ser de­vi­da­mente com­pre­en­dida no in­te­rior deste quadro. Du­rante grande parte do sé­culo XX, pensou-se que esta ac­ti­vi­dade edu­ca­tiva tinha como prin­cipal ob­jec­tivo me­lhorar a saúde ( o mens sana, in cor­pore sano), de­sen­volver fi­si­ca­mente e criar a «base» para a prá­tica des­por­tiva (a ini­ci­ação des­por­tiva). Também se fa­lava na edu­cação do ca­rácter, na apren­di­zagem para a com­pe­tição que a cri­ança iria en­con­trar, de­sa­brida e im­pla­cável, na vida fu­tura de adulto (o homem, lobo do homem, e a mu­lher ser pas­sivo e sub­misso).

Grande parte destes con­ceitos eram pu­ra­mente ima­gi­ná­rios, até porque se con­si­de­ravam como emer­gindo mis­te­ri­o­sa­mente da pró­pria prá­tica des­por­tiva. Mas, tal como no pas­sado, o que in­te­res­sava que as cri­anças das ca­madas so­ciais mais des­pro­te­gidas ad­qui­rissem na es­cola era o LEC (ler, es­crever e contar), para po­derem ler e in­ter­pretar as ins­tru­ções das novas má­quinas com que iriam tra­ba­lhar no fu­turo. Nesta cir­cuns­tância a edu­cação fí­sica não tinha qual­quer im­por­tância e foi sempre des­pre­zada. No pre­sente, o que in­te­ressa acima de tudo, é que do­minem as novas téc­nicas das TIC( tec­no­lo­gias da in­for­mação e co­mu­ni­cação) com idên­tica fi­na­li­dade.

Porém surgiu um pro­blema ines­pe­rado: a evo­lução das ci­ên­cias do cé­rebro ve­ri­fi­cada nos fi­nais do sé­culo pas­sado, as cha­madas neuro-ci­ên­cias, e con­fir­mando os seus re­sul­tados du­rante este 1.º quartel do novo sé­culo, de­mons­traram que a ac­ti­vi­dade mo­tora, afinal o ele­mento cen­tral da edu­cação fí­sica, exercia efeitos ex­tra­or­di­ná­rios sobre a sua es­tru­tu­ração. De­mons­trou-se que o mo­vi­mento, pro­duto di­recto da mo­tri­ci­dade, pro­vo­cava desde a mais tenra idade o au­mento ex­tra­or­di­nário das li­ga­ções (as cha­madas den­drites) entre os neu­ró­nios (as cé­lulas fun­da­men­tais do cé­rebro), es­ti­mu­lando o seu de­sen­vol­vi­mento e ga­ran­tindo a sua ma­nu­tenção. Ou seja, o in­di­víduo au­men­tava de forma no­tável as suas ca­pa­ci­dades men­tais (o ra­ci­o­cínio, a atenção, a con­cen­tração, a cri­a­ti­vi­dade, etc.).

Porém, também ficou de­mons­trado que ga­rantia o au­mento da pró­pria ca­pa­ci­dade mo­tora, factor de­ci­sivo para me­lhorar a sua pres­tação como fu­turo atleta.

To­davia, a questão da Edu­cação Fí­sica, em es­pe­cial no 1.º CEB só será de­vi­da­mente com­pre­en­dida se for con­ce­bida antes de tudo, como um pro­blema edu­ca­tivo e não ex­clu­si­va­mente des­por­tivo, como é cos­tume no País.

“Avante!”, 2 de Junho de 2022