A tão usada frase que diz que «a pri­meira ví­tima da guerra é a ver­dade» é atri­buída a Ésquilo. Ou seja, terá al­guns 25 sé­culos. Mas me­rece ser re­vista.

Pri­meiro, porque a questão não é de ordem fi­lo­só­fica, ou epis­te­mo­ló­gica, ou outra se­me­lhante. A pri­meira ví­tima de cada guerra é sempre um ser hu­mano, ao qual se se­guem mi­lhares ou mi­lhões de ou­tros. É dessas ví­timas que é ne­ces­sário saber, antes de quais­quer ou­tras. E das quais há que evitar es­co­lher, seja na base de que cri­tério for.

É por isso que re­pugna a ati­tude de gente com res­pon­sa­bi­li­dades na de­fesa da paz que se dá ao luxo de es­co­lher que ví­timas os sen­si­bi­lizam. O ac­tual se­cre­tário-geral da ONU cabe nesse grupo. Da mesma forma que o sen­si­bi­lizam as cri­anças e mu­lheres afegãs mas ig­nora as mu­lheres e cri­anças pa­les­ti­ni­anas ví­timas da agressão e do apartheid si­o­nista, fica sen­si­bi­li­zado com a sorte das cri­anças de Kiev, mas não com a das cri­anças de Don­bass ou de Lu­gansk, du­rante anos alvo da agressão nazi-fas­cista do poder em Kiev.

Ajuda a en­tender a im­po­tência da ONU face seja a que con­flito in­ter­na­ci­onal for. Re­sulta de dé­cadas de su­bor­di­nação às es­tra­té­gias dos EUA, que ora a ma­ni­pulam, ora lhe passam por cima. E essas es­tra­té­gias nunca, por nunca ser, visam a paz. Gu­terres, algo am­né­sico, des­co­briu «uma guerra ab­surda no sé­culo XXI». A es­colha do sé­culo já de si tem algum sig­ni­fi­cado. A agressão e des­truição da Ju­gos­lávia, na qual o go­verno de que era pri­meiro-mi­nistro par­ti­cipou em­pe­nha­da­mente, era di­fe­rente por ser de outro sé­culo? O ac­tual con­flito na Ucrânia é mais «ab­surdo» do que as guerras no Iraque, na Síria, na Líbia, no Afe­ga­nistão, no Iémen? Pas­saram-lhe ao lado?

Há efec­ti­va­mente ví­timas de vária na­tu­reza numa guerra. E su­cessos. Por exemplo, de cada vez que a ver­dade é ví­tima, triunfam a dis­si­mu­lação e a hi­po­crisia.

“Avante!”, 5 de Maio de 2022