Dizem al­guns que uma crise é sempre uma opor­tu­ni­dade. Sempre não será, e muito menos para todos. Mas por vezes, e para al­guns poucos e par­ti­cu­lar­mente po­de­rosos, assim é.

Foi a crise pro­vo­cada pelos aten­tados de 11 de Se­tembro de 2001 que deu à ad­mi­nis­tração de Ge­orge W. Bush a opor­tu­ni­dade de, em nome da se­gu­rança na­ci­onal, aprovar le­gis­lação aber­ta­mente an­ti­de­mo­crá­tica. Ao abrigo do Acto Pa­trió­tico, ge­ne­ra­lizou-se a vi­gi­lância global sobre co­mu­ni­ca­ções e dados pes­soais; abriu-se a pos­si­bi­li­dade de rusgas sem man­dato e de de­ten­ções sem jul­ga­mento; ba­na­lizou-se a prá­tica da tor­tura nas pri­sões se­cretas da CIA e em Guan­tá­namo (que, apesar das pro­messas, per­ma­nece em fun­ci­o­na­mento).

Esta pulsão contra as li­ber­dades e ga­ran­tias não se ficou pelo lado de lá do Atlân­tico: de­mons­tram-no a cum­pli­ci­dade de vá­rios Es­tados com os voos se­cretos da CIA, a França em es­tado de ex­cepção per­ma­nente ou a Es­panha da Lei Mor­daça.

guerra ao ter­ro­rismo, de­cre­tada logo após os aten­tados, deu co­ber­tura às agres­sões contra o Afe­ga­nistão e o Iraque, ao es­pe­zi­nhar do di­reito in­ter­na­ci­onal, à mi­li­ta­ri­zação de cada vez mais áreas da so­ci­e­dade, a um novo im­pulso à in­dús­tria do ar­ma­mento. Na ge­ne­ra­li­dade da co­mu­ni­cação so­cial, ne­nhum ques­ti­o­na­mento, dú­vida ou in­qui­e­tação.

Mais re­cen­te­mente, a crise da COVID-19 re­sultou numa imensa con­cen­tração de ri­queza. Nos EUA, os mi­li­o­ná­rios ti­veram a opor­tu­ni­dade de au­mentar as suas for­tunas em 70 por cento, en­quanto mi­lhões caíam no de­sem­prego e na ajuda ali­mentar e muitos, pri­vados de as­sis­tência mé­dica, mor­riam de do­ença: em Agosto de 2021, 754 pes­soas com­bi­navam tanta ri­queza quanto a me­tade mais pobre dos norte-ame­ri­canos. No topo da lista estão os mag­natas (já po­demos dizer oli­garcas?) Jeff Bezos e Elon Musk.

Também por cá, as mai­ores em­presas so­maram aos seus ele­vados lu­cros al­guns mi­lhões su­ple­men­tares em fundos pú­blicos (que fal­taram ao SNS), ao mesmo tempo que apro­vei­taram para des­pedir, fra­gi­lizar vín­culos la­bo­rais e des­re­gular ainda mais os ho­rá­rios de tra­balho. Para ou­tros, so­brou o de­sem­prego, o lay-off, a fa­lência.

Agora é a crise sus­ci­tada pelo con­flito no Leste da Eu­ropa a cons­ti­tuir mais uma opor­tu­ni­dade: para con­ti­nuar a va­lo­rizar a já ful­gu­rante in­dús­tria do ar­ma­mento (a co­tação em bolsa das prin­ci­pais em­presas dis­parou); para elevar fi­nal­mente as des­pesas mi­li­tares dos mem­bros eu­ro­peus da NATO ao al­me­jado pa­tamar dos dois por cento do PIB; para es­pe­cular com o preço dos com­bus­tí­veis, da energia e dos bens ali­men­tares; para cen­surar vozes in­có­modas; para ajudar a le­gi­timar forças e per­so­na­li­dades xe­nó­fobas, fas­cistas e ne­o­nazis, apre­sen­tando-as com uma nova face – a de com­ba­tentes pela li­ber­dade e, seja lá isso o que for, peloOci­dente.

Sim, a crise de muitos é sempre a opor­tu­ni­dade de al­guns. A que preço?

“Avante!”, 24 de Março de 2022