Se não fosse o «Es­tado», Por­tugal co­nhe­ceria um cres­ci­mento eco­nó­mico fa­bu­loso e o seu povo vi­veria faus­to­sa­mente, li­berto de im­postos, bu­ro­cra­cias e má gestão, e então só o mé­rito seria pre­miado. Esta nar­ra­tiva, tão em voga no pe­ríodo áureo do ca­va­quismopara jus­ti­ficar o as­saltoao sector pú­blico cons­truído com a Re­vo­lução de Abril, volta hoje em força na voz de ve­lhas e novas forças po­lí­ticas e do au­tên­tico exér­cito de ana­listasco­men­ta­dores jor­na­listas que todos os dias a re­petem, num labor imenso para a cre­di­bi­lizar.

De­param-se, porém, com um pro­blema: tal nar­ra­tiva é falsa – a menos, claro, que a olhemos apenas da pers­pec­tiva da ín­fima mi­noria que soma for­tunas à custa da pri­va­ti­zação de ser­viços pú­blicos e sec­tores eco­nó­micos es­tra­té­gicos, da des­re­gu­lação de mer­cados e de ajudas es­ta­tais. De resto, não há exem­plos que a sus­tentem, antes pelo con­trário. Opa­raíso li­beral é só mesmo para al­guns, muito poucos.

Ve­jamos al­guns exem­plos.

A pri­va­ti­zação dos CTT, im­posta por im­pe­ra­tivo de efi­ci­ência qua­li­dade, só serviu aos seus novos donos, que viram os lu­cros mais do que du­plicar no se­gundo tri­mestre deste ano. Todas as ou­tras partes en­vol­vidas fi­caram a perder: os atrasos na dis­tri­buição postal chegam por vezes a ul­tra­passar as duas se­manas, há cada vez menos es­ta­ções e com filas cada vez mai­ores, os tra­ba­lha­dores con­frontam-se com cargas ex­ces­sivas e sa­lá­rios con­ge­lados.

Também a li­be­ra­li­zação dos mer­cados dos com­bus­tí­veis e da energia – ga­ran­tiram-nos! –iria con­trolar os preços, pela acção re­gu­la­dora da con­cor­rência. Acon­teceu o oposto. Só nos pri­meiros 11 meses após o fim da po­lí­tica de «preços má­ximos», em 2004, o preço do ga­sóleo au­mentou 46,7 por cento, não dei­xando de es­calar desde então: dos 70 cên­timos/litrode fi­nais de 2003, custa hoje mais de 1,60 euros. Do mesmo modo que, com a li­be­ra­li­zação da energia, em 2006, Por­tugal passou a ser um dos países da Eu­ropa com as fac­turas mais altas para os con­su­mi­dores. Mas nem todos per­deram: só na pri­meira me­tade deste ano, a GALP e a EDP amealharam de lu­cros 166 e 343 mi­lhões de euros, res­pec­ti­va­mente.

No sector da saúde, onde são hoje for­tís­simas as pres­sões pri­va­ti­za­doras, o SNS fi­nancia di­rec­ta­mente os grupos pri­vados em qual­quer coisa como 1500 mi­lhões de euros anuais, valor que ten­derá a au­mentar à me­dida que os ser­viços pú­blicos de saúde e sua ca­pa­ci­dade de res­posta sejam cres­cen­te­mente gol­pe­ados e des­truídos. Assim se ex­plica o de­sin­ves­ti­mento, as sub­con­tra­ta­ções, a de­gra­dação de ins­ta­la­ções.

O pro­blema destes li­be­rais não é com o «Es­tado», mas com o facto de ele poder não estar sempre, em todos os mo­mentos, to­tal­mente ao seu ser­viço. Graças à luta dos tra­ba­lha­dores e do povo, que con­tinua!

“Avante!”, 14 de outubro de 2021