Vinte anos, cen­tenas de mi­lhares de mortos, quatro mi­lhões de des­lo­cados, quase três mi­lhões de re­fu­gi­ados e mi­lhares de mi­lhões de dó­lares de­pois da cha­mada ofen­siva “Li­ber­dade Du­ra­doura” dos EUA para tirar os ta­libãs do poder, o Afe­ga­nistão está de novo à mercê dos fun­da­men­ta­listas, que dizem do­minar já mais de 85% do país.

A in­vasão norte-ame­ri­cana, que era su­posto pro­pi­ciar a con­so­li­dação de um Es­tado de­mo­crá­tico e levar a cabo uma “guerra às drogas”, como não se can­saram de pro­palar os media cor­po­ra­tivos, ter­mina com um saldo em que a es­ta­bi­li­dade po­lí­tica do país nem uma mi­ragem con­segue ser, e com a re­gião a afirmar-se como o centro do cul­tivo e con­tra­bando de ópio. A Ali­ança do Norte que os EUA e a NATO co­lo­caram no go­verno abriu a porta aos “se­nhores da guerra e da pa­poula” e o re­sul­tado está à vista. Dados de 2019 si­tuam os lu­cros do ne­gócio clan­des­tino entre 1.2 e 2.1 mil mi­lhões de dó­lares, su­pe­rior aos das ex­por­ta­ções le­gais. Os ta­libãs, à sua conta, terão ar­re­ca­dado 14 mi­lhões.

Agora, no país onde o ín­dice de po­breza au­mentou onze pontos em re­lação a 2007 e os dó­lares ame­ri­canos ali­men­taram a cor­rupção, dei­xando no ter­reno bar­ra­gens e auto-es­tradas em ruínas e hos­pi­tais e es­colas va­zias, a pro­gressão dos ta­libãs em di­recção a Cabul deixa atrás de si um novo rasto de des­truição e morte e um pro­núncio de re­gresso ao obs­cu­ran­tismo, à opressão, à dis­cri­mi­nação. Se­gundo o jornal The Guar­dian, os ta­libãs já im­pu­seram, nas zonas que con­trolam, res­tri­ções à li­ber­dade de mo­vi­mentos, às roupas e à edu­cação das mu­lheres, e cir­culam pan­fletos exi­gindo o uso da burca. En­tre­tanto, a missão da ONU no país, Unama, in­formou que no pri­meiro se­mestre de 2021 foram mortos 1659 civis e fe­ridos 3254, um au­mento de 47% re­la­ti­va­mente ao mesmo pe­ríodo do ano pas­sado, sendo que quase me­tade destas ví­timas são mu­lheres e cri­anças. Nada que pre­o­cupe o pre­si­dente norte-ame­ri­cano, Jo­seph Biden, que não se coibiu de cantar vi­tória ao dizer que «po­demos acabar com esta guerra in­ter­mi­nável» porque «Bin Laden está morto e a al-Qaida en­fra­que­cida».

Nesta re­es­crita da His­tória, omite-se que Bin Laden era um aliado dos EUA no Afe­ga­nistão, que a al-Qaida está viva e re­co­menda-se, como a NATO bem sabe das ac­ti­vi­dades con­juntas na Síria e na Líbia, e so­bre­tudo que a odis­seia fra­cas­sada dos EUA no Afe­ga­nistão re­monta há mais de quatro dé­cadas, a 1979, quando o «de­mo­crata» Jimmy Carter, Nobel da Paz 2002, de­cidiu armar grupos tri­bais para com­bater o go­verno pro­gres­sista e se­cular de Cabul, que co­meteu o erro im­per­doável de manter re­la­ções pri­vi­le­gi­adas com a União So­vié­tica. Nas­ceram os «mu­jahi­dines», o ter­ro­rismo de fa­chada is­lâ­mica, com os re­sul­tados que se sabe, e os afe­gãos pagam com juros o preço da “Li­ber­dade Du­ra­doura”.

“Avante!”, 29 de Julho de 2021