Entre 720 mi­lhões e 811 mi­lhões de pes­soas no mundo so­freram o fla­gelo da fome em 2020, re­vela o re­la­tório anual da ONU re­la­tivo ao «Es­tado da Se­gu­rança Ali­mentar e Nu­trição no Mundo», di­vul­gado esta se­mana em Roma. O do­cu­mento con­si­dera que se está pe­rante um «agra­va­mento dra­má­tico» da fome a nível mun­dial, com quase um dé­cimo da po­pu­lação do pla­neta a so­frer de sub­nu­trição.

O agra­va­mento da si­tu­ação está re­la­ci­o­nado com as con­sequên­cias da COVID-19: «a pan­demia con­tinua a expor as fra­quezas dos nossos sis­temas ali­men­tares, que ame­açam a vida e a sub­sis­tência de pes­soas em todo o mundo», lê-se no do­cu­mento, que re­vela ainda que mais de 2,3 mil mi­lhões de pes­soas (cerca de uma em cada três pes­soas no mundo) não ti­veram uma ali­men­tação ade­quada em 2020, o que re­pre­senta um au­mento de quase 320 mi­lhões de pes­soas face a 2019. As prin­ci­pais ví­timas são as cri­anças, e não apenas nos países po­bres: na União Eu­ro­peia as­cen­diam a 18 mi­lhões, 22,5%, as que em 2019 en­fren­tavam a po­breza e a ex­clusão so­cial.

En­quanto isso, no mesmo pe­ríodo, cresceu o nú­mero de mi­li­o­ná­rios no mundo, mostra o Re­la­tório Global de For­tunas di­vul­gado pelo banco Credit Suisse. Este clube res­trito acolhe agora cinco mi­lhões de pes­soas, ul­tra­pas­sando pela pri­meira vez a fas­quia de um por cento da po­pu­lação mun­dial. Por­tugal, onde um quinto da po­pu­lação é pobre e mais de 11% dos tra­ba­lha­dores vive em si­tu­ação de po­breza, também está re­pre­sen­tado no se­lecto grupo: 136 mil mi­li­o­ná­rios, mais 19 mil do que em 2019.

Neste ma­ra­vi­lhoso mundo ca­pi­ta­lista, onde ale­ga­da­mente os di­reitos hu­manos ori­entam a acção das de­mo­cra­cias bur­guesas, que em seu nome não he­sitam em impor san­ções a ter­ceiros, a jus­tiça so­cial e a igual­dade de opor­tu­ni­dades com que tantos en­chem a boca pouco têm a ver com a re­a­li­dade. Que o digam os norte-ame­ri­canos, tão ci­osos das suas listas de maus da fita, que à de­núncia da Pro­Pu­blica, uma or­ga­ni­zação de jor­na­listas sem fins lu­cra­tivos que acedeu às de­cla­ra­ções fi­nan­ceiras dos mi­li­o­ná­rios nos EUA, viram a Casa Branca mais pre­o­cu­pada com a fuga de in­for­mação do que com a subs­tância dos factos, os quais re­velam, por exemplo, que Jeff Bezos, o homem mais rico do mundo, em 2007 e 2011 «não pagou um cên­timo em im­postos fe­de­rais». E sem co­meter qual­quer ile­ga­li­dade, note-se.

A porta-voz da Casa Branca, Jen Psaki, logo veio lem­brar que a «di­vul­gação não au­to­ri­zada de in­for­ma­ções con­fi­den­ciais do go­verno é ilegal», pelo que os res­pon­sá­veis pelos ser­viços de im­postos vão in­ves­tigar a fuga de dados. Ou seja, a de­mo­crata ad­mi­nis­tração de Biden, ao invés de se pre­o­cupar com a (in)jus­tiça fiscal, per­segue quem a des­nuda. Per­cebe-se. O se­gredo, a par da hi­po­crisia é a alma do ne­gócio.

“Avante!”, 15 de Julho de 2021