Pri­meiro pensei que o si­lêncio se devia ao fu­tebol, que é como quem diz ao êxodo por­tu­guês rumo a Se­vilha como in­sis­ten­te­mente re­co­men­daram as pri­meiras fi­guras da nação, no seu zelo para que se apoi­asse a Se­lecção. De­pois, face ao in­feliz re­sul­tado, achei que o per­sis­tente si­lêncio se ex­pli­cava pela ne­ces­si­dade de lamber as fe­ridas do or­gulho fe­rido e pelo con­se­quente em­penho na mo­da­li­dade mais po­pular do País, a saber, a de trans­formar bes­tiais em bestas. Fi­nal­mente, dado que o si­lêncio per­sistiu (per­siste) sem que nin­guém vi­esse a pú­blico es­boçar um pro­testo que fosse, co­mecei a des­con­fiar de que aqui havia ma­rosca da grossa.

Com efeito, como ex­plicar que após dias e dias de mas­sacre me­diá­tico a pro­pó­sito da par­tilha de dados le­vada a cabo – mal – pela Câ­mara de Lisboa, nem uma voz das que dizem prezar os di­reitos dos ci­da­dãos tenha pro­fe­rido um pio que fosse contra o Re­gisto de Iden­ti­fi­cação dos Pas­sa­geiros, (Pas­senger Name Re­cord, PNR, na de­sig­nação in­glesa) já em vigor nos países da União Eu­ro­peia?

O PNR – re­giste-se a cu­riosa coin­ci­dência com o nome do par­tido nazi-fas­cista que agora res­ponde por Ergue-te – en­trou em fun­ci­o­na­mento por cá no início do mês. O que é que isto sig­ni­fica? Sig­ni­fica que quem vi­ajar de avião passa a ter o seu nome, mo­rada, nú­mero de te­le­fone, nome dos acom­pa­nhantes, des­tinos, dados sobre formas de pa­ga­mento, nú­mero de malas trans­por­tadas, entre ou­tras in­for­ma­ções, numa base de dados, du­rante cinco anos, ao dispor da GNR, PSP, Po­lícia Ju­di­ciária e Ser­viço de Es­tran­geiros e Fron­teiras, mas também das au­to­ri­dades dos res­tantes países da UE e de ou­tros com quem haja pro­to­colo de ce­dência de dados ou do Ser­viço Eu­ropeu de Po­lícia, Eu­ropol.

A mega base de dados é ge­rida pelo Ga­bi­nete de In­for­ma­ções de Pas­sa­geiros e per­mite cruzar os dados dos pas­sa­geiros com os sis­temas in­for­má­ticos de ou­tras po­lí­cias, bem como a de­fi­nição dos cha­mados perfis de risco, para in­ter­ven­ções ditas pre­ven­tivas.

Re­sul­tante de uma po­lé­mica di­rec­tiva eu­ro­peia ale­ga­da­mente para o com­bate ao ter­ro­rismo, o PNR pul­ve­riza o que ainda pu­desse sub­sistir da pri­va­ci­dade dos ci­da­dãos, que não foram vistos nem achados na sua im­ple­men­tação. Se a li­ber­dade que jul­gamos ter já era uma ilusão, a partir de agora po­demos ter a cer­teza de que optar por um voo, es­co­lher um livro para a vi­agem, se­guir so­zinho ou acom­pa­nhado, tomar uma be­bida ou re­jeitar uma re­feição vai en­formar um perfil que um qual­quer al­go­ritmo se en­car­re­gará de for­necer e que nos po­derá co­locar numa lista de pro­cu­rados, como nos tempos idos do far west.

As boas almas que ainda ontem ru­giam de in­dig­nação ou andam dis­traídas ou querem fazer-nos es­quecer que ad­bicar de di­reitos em nome da se­gu­rança é o ca­minho mais curto para perder ambos.

“Avante!”, 1 de Julho de 2021