O pro­cesso de in­te­gração ca­pi­ta­lista eu­ropeu de­sen­volveu-se, em termos ge­rais, nas costas dos povos, des­pre­zando, ou mesmo afron­tando, a sua par­ti­ci­pação e opi­nião. É longo o cor­tejo de re­fe­rendos cujo re­sul­tado foi des­res­pei­tado, com re­pe­ti­ções su­ces­sivas a serem im­postas, mar­te­ladas com pres­sões e chan­ta­gens vá­rias, até que o re­sul­tado desse o pre­ten­dido. Igual­mente longa é a lista de re­fe­rendos que não foram re­a­li­zados, apesar de re­cla­mados, de forma a pre­venir re­sul­tados in­de­se­jados. De Ma­as­tricht a Lisboa, pas­sando pela moeda única, passos (ou saltos) sig­ni­fi­ca­tivos na in­te­gração, com im­pactos pro­fundos na vida dos tra­ba­lha­dores e dos povos, foram sempre dados evi­tando, im­pe­dindo, de­tur­pando, des­res­pei­tando a sua par­ti­ci­pação.

Tal nunca im­pediu aqueles que de­ter­minam o curso do pro­cesso de in­te­gração de pro­curar formas de le­gi­ti­mação das suas pró­prias op­ções, in­clu­si­va­mente ins­tru­men­ta­li­zando a «opi­nião» dos mesmos «ci­da­dãos» que sempre fi­zeram por ig­norar.

A pró­pria noção, in­ven­tada com o Tra­tado de Ma­as­tricht, de uma pre­tensa «ci­da­dania eu­ro­peia» foi e é ins­tru­mental na busca de jus­ti­fi­ca­ções e de uma le­gi­ti­mação para o apro­fun­da­mento fe­de­ra­lista da União Eu­ro­peia, com a cres­cente usur­pação das so­be­ra­nias na­ci­o­nais e a con­cen­tração de poder na es­fera su­pra­na­ci­onal, o mesmo é dizer, nas po­tên­cias eu­ro­peias que a con­trolam.

A Con­fe­rência sobre o Fu­turo da Eu­ropa in­sere-se nesta di­nâ­mica.

Numa re­cente de­cla­ração con­junta dos pre­si­dentes da Co­missão Eu­ro­peia, do Con­selho da UE e do Par­la­mento Eu­ropeu, um au­tên­tico mo­nu­mento ao ci­nismo, que lança a dita Con­fe­rência, afirma-se que «a UE tem de dar res­posta às pre­o­cu­pa­ções e am­bi­ções dos ci­da­dãos». A pan­demia de COVID-19, também aqui, pa­rece ser a jus­ti­fi­cação per­feita para levar por di­ante pro­jetos e con­clu­sões pré-es­ta­be­le­cidas. Pouco im­porta que a Con­fe­rência já es­ti­vesse de­ci­dida mesmo antes da pan­demia, que agora é usada para jus­ti­ficar a sua ne­ces­si­dade.

Há que «dar voz aos ci­da­dãos sobre os as­suntos que lhes in­te­ressam», dizem-nos. Mas antes que estes possam se­quer pro­nun­ciar-se, os or­ga­ni­za­dores da Con­fe­rência tratam de de­finir quais são os as­suntos que in­te­ressam aos ci­da­dãos, de­li­mi­tando dez áreas te­má­ticas sobre as quais estes se devem pro­nun­ciar, através de eventos que devem re­flectir «os va­lores da UE». Uma de­sa­ver­go­nhada farsa.

A par­ti­ci­pação tem, por­tanto, de obe­decer a câ­nones pré-for­ma­tados, de forma a ga­rantir, tanto quanto pos­sível, a au­sência de des­vios face às con­clu­sões pré-de­ter­mi­nadas. Toda a es­tru­tu­ração da Con­fe­rência con­corre para este ob­je­tivo.

Nada disto é novo. A Con­fe­rência tem an­te­ce­dentes na Con­venção sobre o fu­turo da Eu­ropa, lan­çada 2001, para, ima­gine-se, de­bater «o fu­turo da União Eu­ro­peia». Sa­bemos no que deu. A Con­venção ela­borou o que veio a ser o pro­jeto de Tra­tado que es­ta­be­lecia uma «Cons­ti­tuição para a Eu­ropa». Em dois re­fe­rendos, re­a­li­zados em França e na Ho­landa, os ci­da­dãos acer­taram contas com algo que ou­tros di­ziam ter sido feito em seu nome. Chum­baram a Cons­ti­tuição. A mesma que lhes foi de­pois im­posta como Tra­tado de Lisboa, ra­ti­fi­cado sem di­reito a re­fe­rendos em 26 dos 27 Es­tados-Mem­bros.

“Avante!”, 27 de Maio de 2021