Ins­ti­tuiu-se há tempos, no atri­bu­lado meio do co­men­tário fu­te­bo­lís­tico na­ci­onal, o termo car­tilha, para de­signar a prá­tica de dis­se­mi­nação sis­te­má­tica e or­ga­ni­zada de uma de­ter­mi­nada nar­ra­tiva, pre­vi­a­mente de­fi­nida mas apre­sen­tada como sendo a opi­nião de cada um dos co­men­ta­dores e ar­ti­cu­listas. Não há como saber se a acu­sação tem fun­da­mento, e neste caso talvez nem seja assim tão im­por­tante. Mas o que pa­rece evi­dente é a exis­tência de muitas car­ti­lhas a cir­cular nos jor­nais, rá­dios e te­le­vi­sões da nossa praça (e não só) e sobre ques­tões bem mais sé­rias.

Torna-se di­fícil en­con­trar outra ex­pli­cação para o re­curso cons­tante à ex­pressão «con­flito» para ex­plicar o que mais uma vez se passou na Faixa de Gaza. Não se­riam «mas­sacre» ou «bar­bárie» con­ceitos bem mais apro­pri­ados para des­crever bom­bar­de­a­mentos su­ces­sivos sobre po­pu­la­ções civis, amon­to­adas num ter­ri­tório exíguo de onde não podem sair? So­bre­tudo sa­bendo-se que os mís­seis vi­saram ha­bi­ta­ções, es­colas, bi­bli­o­tecas, ser­viços de saúde, cen­trais ener­gé­ticas ou agên­cias no­ti­ci­osas e que pro­vo­caram a morte de de­zenas de cri­anças…

E que outra jus­ti­fi­cação ha­verá para a in­sis­tência na tese da «guerra» Is­rael versus Hamas, quando não seria assim tão di­fícil saber que a ocu­pação da Pa­les­tina an­te­cede em dé­cadas a cri­ação deste par­tido e que a vi­o­lência dos ocu­pantes recai sobre todo o povo pa­les­ti­niano e as vá­rias fac­ções da re­sis­tência? Como se fossem do Hamas os ha­bi­tantes de Je­ru­salém Ori­ental ex­pulsos das suas casas para que estas sejam, de­pois, en­tre­gues a co­lonos is­ra­e­litas. Ou os agri­cul­tores de Belém, que viram as suas terras ficar do lado er­rado do muro e que por isso per­deram o di­reito a elas. Ou ainda os mi­lhares de pa­les­ti­ni­anos presos em Is­rael – sem jul­ga­mento, sem de­fesa, sem nada –, muitos dos quais cri­anças…

Entre cons­tantes re­fe­rên­cias ao ca­rácter is­la­mita do Hamas, pa­rece não haver quem se lembre que os si­o­nistas jus­ti­ficam a ocu­pação da Pa­les­tina com ale­gados di­rei­tos­ga­ran­tidos por Deus ao povo es­co­lhido. E como sus­tentar a tese de que Is­rael é a única de­mo­cracia do Médio Ori­ente quando é a sua pró­pria lei que con­sagra o país como lar na­ci­onal do povo judeu e re­co­nhece a exis­tência de ci­da­dãos de pri­meira e de se­gunda? Já a per­ma­nente evo­cação do di­reito de Is­rael a existir – outro item da mais que certa car­tilha – oculta um cer­ta­mente pe­queno por­menor: é o Es­tado da Pa­les­tina que con­tinua sem existir, mais de sete dé­cadas após ter sido con­sa­grado pelas Na­ções Unidas.

Des­mas­carar esta car­tilha é es­sen­cial para re­velar a ver­da­deira na­tu­reza (co­lo­nial, xe­nó­foba, brutal) da ocu­pação da Pa­les­tina e uma boa ajuda para lhe pôr fim.

“Avante”, 27 de Maio de 2021