Ah, se a hi­po­crisia pa­gasse im­posto! Qual dí­vida pú­blica, qual quê! Nem sa­be­ríamos o que fazer a tanto di­nheiro ar­re­ca­dado.

Sempre que algum es­cân­dalo re­benta cá no burgo é vê-los, aos hi­pó­critas, a saltar de todos os lados. Pa­recem pulgas em lombo de cão vadio em hora de co­ceira…

É o que está a acon­tecer com o «caso Ode­mira», onde um surto de COVID-19 trouxe para a ri­balta o que todos sa­biam e (quase) nin­guém queria saber e hoje (quase) toda a gente faz de conta que des­co­nhecia. Um horror, uma ver­gonha, um es­cân­dalo, uma ig­no­mínia, um opró­brio… Os ad­jec­tivos su­cedem-se ao ritmo da ver­bor­reia dos pro­ta­go­nistas apa­nhados no local do crime ou que para ele con­vergem atraídos como moscas para os ho­lo­fotes me­diá­ticos.

No li­toral alen­te­jano como no Alen­tejo in­te­rior ou no Al­garve há mi­lhares de tra­ba­lha­dores a viver em con­di­ções sub-hu­manas, ex­plo­rados, es­cra­vi­zados até. Estão há anos à vista de todos, mas nin­guém pa­rece saber ao certo quantos são. O Ser­viço de Es­tran­geiros e Fron­teiras fala em 9615 imi­grantes le­gais; o pre­si­dente da Câ­mara diz que são 13 mil; o Mo­vi­mento Juntos pelo Su­do­este ga­rante que no pico das co­lheitas as ne­ces­si­dades da re­gião as­cendem a 15 000 tra­ba­lha­dores. O sector agrí­cola, re­pre­sen­tado pela As­so­ci­ação dos Hor­ti­cul­tores, Fru­ti­cul­tores e Flo­ri­cul­tores de Ode­mira e Al­jezur, faz-se de morto, dei­xando ao CDS e ao Chega a de­fesa da sua sar­dinha, pois como é por de­mais evi­dente nada tem a ver com os sa­lá­rios de mi­séria e a hi­per­so­bre­lo­tação das ha­bi­ta­ções, e cer­ta­mente nunca ouviu falar em trá­fico de pes­soas, au­xílio à imi­gração ilegal e an­ga­ri­ação de mão-de-obra ilegal.

O Go­verno também não sabia de nada, tal como a Pre­si­dência da Re­pú­blica, sempre tão bem in­for­mada, pelos vistos es­capou-lhe esta. Valha-nos a Santa COVID que veio pôr em pratos limpos a suja re­a­li­dade com que tantos con­vi­viam e tão poucos afinal co­nhe­ciam.

Fa­zendo jus ao dito de que não há fome que não dê em far­tura, eis que An­tónio Costa re­co­nheceu que «al­guma po­pu­lação vive em si­tu­a­ções de in­sa­lu­bri­dade ha­bi­ta­ci­onal inad­mis­sível», com «risco enorme para a saúde pú­blica, para além de uma vi­o­lação gri­tante dos di­reitos hu­manos», pelo que o Go­verno lá acordou para o as­sunto e impôs uma cerca sa­ni­tária às fre­gue­sias afec­tadas, en­quanto anda numa roda viva à pro­cura de local para alojar os que por via da pan­demia viram re­co­nhe­cida a sua hu­mana con­dição.

En­tre­tanto, em Belém, pre­para-se uma pre­si­dência aberta, coisa que cai sempre bem.

De res­pon­sa­bi­li­dades das en­ti­dades em­pre­ga­doras não se fala, como não se fala das leis que per­mitem sa­lá­rios de mi­séria, da ins­pecção às con­di­ções de tra­balho que es­cas­seia ou das ri­dí­culas pe­na­li­za­ções que fazem com que o crime com­pense.

Até ao pró­ximo vírus e a mais uma ronda de pul­gueda in­dig­nação.

“Avante”, 6 de Maio de 2021