Quando o novo in­qui­lino da Casa Branca anun­ciou urbi et orbi que os EUA es­tavam de re­gresso às lides, o gla­mo­roso Amé­rica is back, como se al­guma vez se ti­vessem ido em­bora, os po­deres ins­ti­tuídos na Eu­ropa re­ju­bi­laram, fe­lizes por se li­ber­tarem do sen­ti­mento de or­fan­dade sus­ci­tado pelos ex­cessos de Trump, que de tão des­pu­do­rados di­fi­cul­tavam as co­ni­vên­cias do cos­tume.

Mais po­lido do que o seu an­te­cessor, Biden pode dizer que con­si­dera Putin um as­sas­sino e que ele irá pagar por isso, ex­pulsar di­plo­matas russos e impor san­ções eco­nó­micas à Rússia, sem com isso sus­citar qual­quer crí­tica. Do mesmo modo, pode or­denar às forças ar­madas norte-ame­ri­canas que ata­quem na Síria e ajudem os ter­ro­ristas, manter as san­ções contra Cuba e a Ve­ne­zuela, ou acusar a China de ser uma ameaça à es­ta­bi­li­dade global, que as ditas de­mo­cra­cias eu­ro­peias nem pes­ta­nejam.

A «ordem na­tural das coisas» voltou a reinar, tem­pe­rada com o charme nada dis­creto da nova guerra fria com os sus­peitos do cos­tume, para sos­sego dos ali­ados e be­ne­fício do ca­pital.

Neste re­gresso à nor­ma­li­dade faz-se planos para dez mil anos, que é como quem diz para os tempos que aí estão e os que aí vêm, ricos em COVID-19 e es­cassos em va­cinas. En­quanto nos EUA o amigo ame­ri­cano segue à risca a con­signa «a Amé­rica pri­meiro», o que faz com que nem uma va­cina fa­bri­cada no ter­ri­tório norte-ame­ri­cano saia para o es­tran­geiro, no velho con­ti­nente a Co­missão Eu­ro­peia en­reda-se em si­gi­losas ne­go­ci­a­ções com as far­ma­cêu­ticas que não só não cum­priram o ini­ci­al­mente acor­dado como agora sobem o preço de en­tregas fu­turas. É o caso da Pfizer, que se­gundo o des­bo­cado pri­meiro-mi­nistro búl­garo, Boyko Bo­rissov, co­meçou por vender as pri­meiras doses a 12 euros, subiu de­pois o preço para 15 e já cobra agora 19,50 euros nas en­co­mendas para os pró­ximos dois anos. A mesma Pfizer que acaba de as­sinar um acordo com Is­trael para a venda de mi­lhões de doses em 2022, que in­clui o di­reito de opção para a compra, se ne­ces­sário, de mi­lhões de doses su­ple­men­tares. O aliado di­lecto dos EUA tem já mais de me­tade da po­pu­lação va­ci­nada.

Presa pela sub­missão a Washington e às pri­o­ri­dades de Biden, a UE nem se­quer con­segue fazer res­peitar a pre­si­dente da Co­missão, Ur­sula von der Leyen, há dias hu­mi­lhada pelo seu cor­re­li­gi­o­nário Charles Mi­chel e pelo pre­si­dente turco Er­dogan, que numa in­qua­li­fi­cável ma­ni­fes­tação de mi­so­ginia a re­le­garam para se­gundo plano num en­contro ofi­cial, dei­xando-a de pé en­quanto re­fas­te­lavam os tra­seiros nas duas pol­tronas da sala.

En­tre­tanto as grandes for­tunas en­gordam mesmo em plena crise eco­nó­mica global, como re­velou a re­vista Forbes: 80% dos mi­li­o­ná­rios estão mais ricos e a lista cresceu, in­cluindo agora mais 660 nomes.

E há quem acre­dite que ca­pi­ta­lismo rima com de­mo­cracia!

“Avante”, 22 de Abril de 2021