A de­cisão ins­tru­tória do pro­cesso ju­di­cial da cha­mada Ope­ração Marquês (que en­volve, entre ou­tros, o ex-pri­meiro-mi­nistro José Só­crates), pro­fe­rida no final da se­mana pas­sada, está a dar que falar. Às justas in­com­pre­en­sões de uns, somou-se toda a es­pécie de apro­vei­ta­mentos por parte da­queles que, de modo mais ou menos as­su­mido, pre­tendem atacar o re­gime de­mo­crá­tico e sub­verter a Cons­ti­tuição.

Como o PCP há muito vem afir­mando, a cor­rupção é ine­rente à na­tu­reza do ca­pi­ta­lismo e à sua ló­gica de lucro e acu­mu­lação de lucro, pas­sando por cima de todos e de tudo. Isso mesmo foi ex­presso no fas­cismo, di­ta­dura ter­ro­rista ao ser­viço do grande ca­pital, sis­tema de ins­ti­tu­ci­o­na­li­zação da cor­rupção, da sua ocul­tação e de re­pressão sobre aqueles que lu­taram contra esses in­te­resses e prá­ticas.

É essa ló­gica que con­tinua, com a su­bor­di­nação de su­ces­sivos go­vernos ao poder eco­nó­mico e da teia de in­te­resses e cum­pli­ci­dades que dela re­sulta: a porta gi­ra­tória entre go­vernos e con­se­lhos de ad­mi­nis­tração e as pri­va­ti­za­ções são exem­plos par­ti­cu­lar­mente re­ve­la­dores deste que é um traço mar­cante da po­lí­tica de di­reita. Mas estão longe de ser os únicos.

A este res­peito, afirmou o Se­cre­tário-geral do PCP na Festa do Avante! de 2015 (numa das muitas in­ter­ven­ções em que se re­feriu ao tema): «Se Por­tugal viu crescer a cor­rupção e a fraude eco­nó­mica e fi­nan­ceira, a pro­mis­cui­dade entre in­te­resses pú­blicos e pri­vados com a cres­cente sub­missão do poder po­lí­tico ao eco­nó­mico, a eles lho de­vemos, ao PSD, PS e CDS e à sua po­lí­tica ao ser­viço do grande ca­pital e da ins­tru­men­ta­li­zação do Es­tado a favor dos grandes grupos eco­nó­micos.»

De facto, os úl­timos anos têm sido ricos em casos en­vol­vendo mem­bros de go­vernos e grupos eco­nó­micos e fi­nan­ceiros: para além da Ope­ração Marquês, os casos BPN, BPP, BES/​GES e EDP e os Vistos Gold fi­zeram re­cair sus­peitas sobre fi­guras de topo da es­tru­tura do Es­tado.

Dever de me­mória

Não só de en­vol­vi­mento em casos ju­di­ciais se faz o cur­rí­culo dos par­tidos da po­lí­tica de di­reita (os tra­di­ci­o­nais e os seus su­ce­dâ­neos) em ma­té­rias re­la­ci­o­nadas com a cor­rupção. Ao longo dos anos, os seus votos foram de­ci­sivos para in­vi­a­bi­lizar ou li­mitar su­ces­sivas pro­postas apre­sen­tadas pelo PCP na As­sem­bleia da Re­pú­blica vi­sando um efec­tivo com­bate à cor­rupção e às prá­ticas que a fa­vo­recem e o re­forço dos meios e da au­to­nomia do Mi­nis­tério Pú­blico.

Ainda há pouco mais de um ano, no de­bate do Or­ça­mento do Es­tado para 2020, a abs­tenção do PSD, CDS e Chega juntou-se ao voto contra do PS para in­vi­a­bi­lizar o es­ta­be­le­ci­mento de um quadro claro e de re­la­tiva es­ta­bi­li­dade na pla­ni­fi­cação dos in­ves­ti­mentos a re­a­lizar em ma­téria de in­ves­ti­gação cri­minal e com­bate à cor­rupção. A cri­ação do crime de en­ri­que­ci­mento ilí­cito, pela qual o PCP se bate pelo menos desde 2006, não teve me­lhor sorte.

Será também im­por­tante re­gistar que uma das prin­ci­pais me­didas ins­critas pelo PSD na sua pro­posta de re­forma da Jus­tiça é a ins­ti­tuição do con­trolo po­lí­tico do Mi­nis­tério Pú­blico e o con­se­quente ataque à sua au­to­nomia (con­sa­grada na Cons­ti­tuição), ou seja, pre­ci­sa­mente o oposto do que se im­punha para um efec­tivo com­bate à cor­rupção.

Pro­cesso ainda em curso

Vol­tando ao pro­cesso da Ope­ração Marquês, do muito que se disse podem não ter fi­cado claros al­guns im­por­tantes factos: desde logo, a evi­dência de que – como su­blinha o PCP num co­mu­ni­cado emi­tido no dia 11 – este pro­cesso ju­di­cial «está longe do seu fim», pois a de­cisão ins­tru­tória agora co­nhe­cida «não é de­fi­ni­tiva quanto ao caso ju­di­cial. Esta fase pro­ces­sual não é ainda o jul­ga­mento». Além disso, partes da de­cisão serão ob­jecto de re­curso por parte do Mi­nis­tério Pú­blico, como foi de ime­diato evi­den­ciado – e re­le­gado para o es­que­ci­mento pela ge­ne­ra­li­dade da co­mu­ni­cação so­cial.

Nesse mesmo co­mu­ni­cado, o PCP, re­co­nhe­cendo a «inequí­voca com­ple­xi­dade e di­mensão» do pro­cesso, as­sume que ele se tem «ar­ras­tado no tempo de forma que é ina­cei­tável aos olhos do ci­dadão comum». Para o Par­tido, o pro­cesso deve se­guir para jul­ga­mento «tão rá­pido quanto pos­sível».

“Avante”, 15 de Abril de 2021