Estando, na Escola Publica, suspensas as aulas, caseiramente confinados professores e alunos, comprometido o final do ano lectivo – o ministro da Educação despacha o seguinte: Tele- Escola para todos!
No entanto, a televisão não passa de um simples meio.
Isto é, ela nunca foi um fim, em si mesma.
Vejamos.
Os professores não estão.
Os alunos não estão.
A atenção não está.
E a Escola, ela, sobrevive ela a toda esta ausência?
Evidentemente.
Não estão as aulas mas está a matéria.
Onde?
Na televisão.


Quer o aluno tirar uma dúvida de Matemática?
Pergunta à televisão.
Quer o aluno aconselhar-se, bibliografar-se?
Aconselha-se com a televisão.
Bibliografa-se com a televisão.
Quer o aluno, ver corrigido uma prova escrita?
Vai à televisão e estende-lhe o papel.
E a televisão, como reage ela?
Há diversas teses.
Se o écran chispa, em reflexo, uma luz – é a aprovação.
Se o écran solta, agudo, um estalido – é que aluno deve estudar mais.
Finalmente, se o écran partir-se em estilhas – é uma participação disciplinar, com aplicação da respectiva medida correctiva ao aluno.
A televisão quer, pode e manda.
Dentro de alguns anos, começando a verificar-se que as nossas barragens abrem brecha, que as nossas fábricas produzem mal, que as nossas últimas minas fecharam – de quem é a responsabilidade?
Da televisão.
A escola é televisionável?
Os grandes mestres foram escusados?
Moniz Pereira podia ter mandado fazer na televisão, por um contínuo, os seus exercícios e métodos de treino?
Bento Caraça podia ter mandado espetar numa câmara de filmar, com quatro pioneses, os seus Princípios de Análise Infinitesimal?
Óscar Lopes podia ter-se limitado à bibliografia e aos seus sumários?
De resto, no contexto dos fins da educação, para quê a televisão?
Segundo algumas cabeças que, igualmente, confundem meios e fins, há outra solução, talvez melhor – a Escola por correspondência electrónica.
A televisão implica a disseminação dos alunos, dissuade o grupismo, elimina a intervenção do professor titular da disciplina.
A escola por correspondência electrónica implica um meio digital e quem diz meio (mesmo digital) diz algum trabalho de correio entre professores e alunos.
Remetente a destinatário. Destinatário a remetente.

«Exº Srª D. Escola
Queira V. Exª ter a gentileza de me enviar, na volta do correio, uma ficha de trabalho sobre Química Inorgânica.
De V. Exª. Atenciosamente, etc.»

«Exº Sr. Aluno
Temos o prazer de lhe enviar, junta, a 2ª aula de Ginástica de Aparelhos. Aproveitamos a oportunidade para lhe informar que a sua última comunicação foi remetida em dia e horário impróprios (Sábado, 23 horas), pelo que lhe lembramos o horário de funcionamento escolar (2ª a 6ª feira, das 8.30 às 17).
Sem outro assunto, etc.»

Compreende-se a preocupação do ministro.
Compreende-se que a Escola Pública tenha como missão dar aulas.
Que, se não der aulas, não forma engenheiros.
E que, sem engenheiros, não temos estradas, nem pontes, nem barragens, nem fábricas, nem futuro, nem País.
Daí, o ser indispensável dar aulas.
Daí, o serem meritórios os esforços nesse sentido.
Só que.
Só que as aulas, mesmo sendo o ensino obrigatório até aos 18 anos de idade, são um acto voluntário.
Há aulas porque os professores as querem dar.
Há aulas porque os alunos as querem receber.
Se não há aulas – de quem é a vontade?
A vontade de que não haja?
É dos professores?
É dos alunos?
É de alguns professores?
É de alguns alunos?
É de uns e de outros?
Ou nem de uns nem de outros?
Um ponto.
Mas há outro, e, sem dúvida, muito mais importante.
Porque é que não há aulas?
Apurar porque isso assim acontece é, seguramente, o trabalho das autoridades sanitárias.
Apurar as implicações de tal decorrência é, seguramente, o trabalho da Escola.
E não só.
Isso e realizar um trabalho profissional de auto-crítica e de auto-superação.
Ou seja, e por pontos:
1) Saber quais os problemas dos profissionais do ensino em Portugal, que tão desvalorizados e mal tratados têm sido pelos sucessivos governos (e até pela opinião pública em geral) e que a actual situação dramática do País tem vindo a demonstrar como a classe docente, à semelhança dos profissionais de saúde, é um pilar insubstituível no funcionamento da sociedade portuguesa.
2) Solucionar esses problemas.
É só?
Não é só, claro.
Dir-se-á que o fundo da questão é estritamente educacional.
Mas que é a Educação estrita?
Não haverá, nesse limite, uma contradição?
Até que ponto uma Educação estrita continua a ser – Educação?
Até que ponto a Educação é – uma fábrica de aulas digitais e televisionáveis?
Até que ponto é que o aluno é – um profissional de fichas, testes e exames?
Os alunos não terão o direito de ser – alunos?
Os alunos não terão o dever de ser – alunos?
Português, claro.
Matemática, sem dúvida.
História e Geografia, evidentemente.
E Educação Física, Música, Tecnologias, FísIca-Química, Ciências Naturais, Inglês, Francês, Espanhol – inevitavelmente.
Mas não só.
A Educação é, por direito, por dever, por tradição, por vocação, por emergência nacional – uma cultura e uma consciência, uma erudição e uma crítica, uma reserva e uma acção, uma honra e uma dialéctica.
Quando não é – não é uma Educação.
Afinal, a Educação – o que é?
É um fim ou um meio?
Um edifício ou uma ideia?
Uma retórica ou uma função?
Uma cristalização ou uma evolução?
Se a verdadeira Educação é uma vontade, essa maleabilidade, essa resposta dinâmica a uma realidade dinâmica – não se espere solucionar o actual problema de emergência nacional nos quadros de uma Escola, fixa, estrita, ossificada, digitalizada, fichada.
Televisionável.

08.04.20
Álvaro Couto