Nunca na minha vida contei a ninguém o segredo do João. Já adulto, não o via há sei lá quantos anos, e às vezes pensava nele, pá («em frente!»), a abrir caminho à quadrilha, a deboiçar mato de cisto a golpes de braços nus, indiferente às silvas que a nós nos cortavam nas canelas como canivetes («esquerda volver!») e o gajo, pá, de calções, sem um arranhão, sei lá como, isento de amores-de-burro que a nós se nos abotoavam aos atacadores e às meias da raquete. O João, pá, a desbravar a tarde alentejana como um bandeirante na Serra dos Motrinos1. Até que a um gesto seu a coluna estacava («sentido!») e o João, pá, com perícia militar, a dar o azimute («olhar esquerda!») do bando de pardais às nove horas («apresentar arma!»).
Eu era o único do grupo que sabia do extraordinário fenómeno sobrenatural que ia ali repetir-se diante dos nossos olhos. Já nem sequer tirava a patilha de segurança da pressão de ar («pelotão de execução: preparar!»). Ali ficava, a apreciar aquela cena por cima do cano do fuzil, pá, sorridente e invisível à minha unidade de guerrilheiros do sétimo ano que pelas miras só podiam ver pardais («apontar!») e não podiam ver o João, e não o poderiam entender.
E então, uma fracção de segundo antes da troada calar as cigarras («fogo!»), um chumbo antecipava-se contra o céu, assobiava muito acima das cabeças dos pardais em debandada e dissolvida-se em vapor na tremulina. «Porra, pá! Outra vez? Mas quem é que disparou antes?! Fugiram todos!». E eu sorria, silencioso aos protestos furiosos do João, porque o segredo dele estaria sempre seguro comigo, mesmo que um dia tivéssemos 18 anos e as armas fossem a sério e ele ainda se recusasse a matar, já não um pardal, mas uma ideia, ou um sonho, ou um amigo.