Neste tempo que estamos a viver, complexo, difuso, assimétrico, deixo algumas reflexões que me parecem ser uma «emergência» pedagógica já agora que tanto alarido se faz acerca da emergência climática, como se isso fosse o principal problema com o qual estamos confrontados.

Sendo um dado adquirido que a maioria das pessoas dos países industrializados estão desligadas da Terra mas dependentes do sustento que de lá provém, é do Planeta Alimentar que devemos falar e com urgência. Mas aí duvido que isso fosse motivo para cobertura mediática e isto porque o capitalismo predador seria o principal acusado, enquanto que o tema das «alterações climáticas» pode ser utilizado a seu favor e, quem sabe, com grandes negócios pelo meio!… Não deixa de ser curioso que variações no clima do Planeta, com picos de temperatura por vezes prolongados e fenómenos extremos (que sempre existiram!), passassem agora a ser tema da actualidade para servir de biombo às graves consequências geradas pela globalização capitalista.

Um caso concreto para reflectir

Durante a recente campanha para as eleições legislativas apareceu na minha caixa do correio um panfleto de uma formação política dita de esquerda que elegeu como preocupação a emergência climática e aproveitou para dizer que a principal causa dos incêndios em Portugal são as alterações climáticas. Mas não, não são. A principal causa dos incêndios em Portugal está nas políticas agrícolas decididas em Bruxelas com o amém de Lisboa, inviabilizando economicamente a presença de agricultores no território, deixando como alternativa a monocultura do eucalipto, ou a emigração. Assim sendo, as afirmações descritas no referido panfleto ou são fruto da ignorância, ou escamoteiam as causas, absolvendo os causadores. Sempre tivemos verão quente, vento suão, ar seco, sempre tivemos incêndios, mas sem tragédia porque existiam agricultores e agricultura à volta dos perímetros florestais, não sendo necessários nem bombeiros nem aviões, as populações bastavam.

Só esperamos que o clima não venha a servir para desviar a atenção dos problemas societais que vamos enfrentar neste século XXI. Particularmente no domínio alimentar, o direito à comida de qualidade terá de ser reivindicado assim como o direito à saúde, uma vez que ambos estão interligados. A tendência tem de ser consumir melhor, o que significa não ir em modas de ocasião, sejam elas quais forem, mas, no caso de Portugal, assegurar a valorização da dieta Mediterrânica, aliás erigida recentemente a Património da Humanidade. Da Agricultura ao Agro-Negócio S.A. O período da chamada «Revolução Verde», que não foi revolução e muito menos verde, foi o período que se seguiu ao final da Primeira Guerra Mundial.

E é espantoso, pois já nesse tempo o capitalismo conseguiu iludir só com essas duas palavras, fazendo crer o contrário do que se iria seguir até aos nossos dias. Nesse tempo, sempre a pretexto da necessidade de produzir mais, produzir para todos, produzir mais rápido e mais barato, surgiram os primeiros agro-tóxicos, as primeiras sementes modificadas, o trigo e o milho híbrido, o nitrato passou a ser utilizado para aumentar a produção agrícola, visto o seu escoamento ter sofrido uma redução para utilização militar logo a seguir à guerra.

Estavam lançadas as bases do produtivismo e da intensificação da produção, que viria a dar um salto quantitativo após a Segunda Guerra Mundial. Com a aplicação do Plano Marshall na Europa chegaram os primeiros (de muitos) tractores americanos, alteraram-se sucessivamente os hábitos alimentares indo ao encontro do «gosto» americano – o fast-food» chegaria em breve. Com a redução dos rendimentos provenientes das explorações agrícolas, tem início o êxodo dos camponeses à procura de «melhor vida» nos centros urbanos. Deixam de comer frango do campo e passam a comer frango com hormonas, criado em quatro semanas, frangos esses alimentados com milho e soja americana. A Agricultura feita por sábios, por homens e mulheres que tinham uma forte relação com a terra, que viviam em harmonia com a natureza, perde uma batalha. Surge, entretanto, a toda poderosa Indústria Agro-Alimentar que, servindo-se de novas «técnicas» de produção, exige sempre «mais», mais produção e mais barata. Isto leva à teoria da competitividade, da dimensão adequada e da viabilidade económica, o que em agricultura significa um autêntico terramoto.

Em Portugal este modelo foi aplicado a partir do consulado de Cavaco Silva, decorria então o PEDAP (Programa Específico de Desenvolvimento da Agricultura Portuguesa), e aqui também as palavras pesaram fortemente. Na verdade, este foi o Programa de Estrangulamento e Destruição da Agricultura Portuguesa, como se viu mais tarde com o desaparecimento de milhares de explorações agrícolas. E é nessa destruição que nascem as fases do Agro-Negócio S.A. que conhecemos hoje, que é a fotocópia do Agri-Business que está a semear o caos a nível mundial. Agricultores ou empresários? A tese da dimensão adequada e da viabilidade económica, para além de um embuste, funcionou como um processo de exclusão e de selecção. Uma exploração agrícola familiar não é uma empresa porque as suas funções vão muito para além do objectivo da produção. Mas essas considerações não são a preocupação do agro-negócio, cujo único objectivo é o lucro e, para isso, o padrão passa a ser o produtor/empresário especializado por sector.

O desmantelamento das redes públicas de aprovisionamento, designadamente a EPAC, mas também a rede de recolha de leite, deixam os produtores reféns daqueles que fazem o escoamento da produção sem preço definido. Saiu a cultura entrou o negócio: produzir ao menor custo possível, quaisquer que sejam as consequências. E o que é que os «agricultores» ganharam com a sua promoção a empresários? NADA. Porque o que ganharam em volume de produção não compensou o que perderam em preços. E isto porque apareceu, entretanto, um adversário de peso: a Grande Distribuição, que açambarcou todos os ganhos de produtividade. Promoções, preços baixos, pague dois e leve três, a abundância a baixo custo é pura ilusão porque o custo vai ser muito alto, poucos sabendo onde está a variável de ajustamento: está no endividamento dos produtores e no esgotamento da Mãe-Terra! Este é um modelo insustentável, que leva os produtores ao desespero e mesmo ao suicídio. Não sei se em Portugal existem estatísticas sobre estas gravíssimas consequências.

No outro extremo do Planeta, na Índia, organizações congéneres da CNA dão-nos também conta de centenas de suicídios de pequenos agricultores ao não conseguirem assegurar o sustento das suas famílias, apesar de trabalharem até à exaustão com esse objectivo. Em França, daquilo que conheço, as estatísticas registam mais de um suicídio por dia devido a dificuldades financeiras. Ou seja: são modernos e competitivos, têm dimensão adequada, dispõem de alta tecnologia e isso não chega para aguentar a pressão do sistema capitalista para produzirem sempre mais.

Cem anos depois Decorridos cem anos da «Revolução Verde» o capitalismo controla a Arma Alimentar: sementes modificadas e patenteadas, acordos de livre comércio arrasaram a soberania alimentar dos povos, sendo evidente a cumplicidade dos respectivos governos que assinaram os acordos gerando o caos mundial. Vale tudo no «Import-Export», que provoca alterações societais gravíssimas para milhões de camponeses arruinados pelas multinacionais do «livre comércio».

A televisão mostra imagens chocantes dos efeitos sem nunca denunciar as causas, pois se o fizesse ajudaria à compreensão dos desafios deste século no que diz respeito às questões da Terra e da Alimentação. O modelo Agro-Exportador funciona como se fosse indústria mineira: extrai, retira e não devolve à terra, esta já não tem matéria orgânica, os adubos de síntese são um último recurso e um paliativo. Temos muitos vendedores de agro-tóxicos, mas não temos um microbiologista! É urgente denunciar as consequências para a saúde e o ambiente de um modelo baseado no uso intensivo de agro-tóxicos, um modelo que utiliza como escravos em plantações do século XXI as vítimas económicas do livre comércio.

Nos campos, já os vemos em Portugal com um «turbante vermelho ou preto» impecavelmente ajustado à cabeça, sinais perturbadores de um mercado mundializado, controlado por multinacionais de mão-de-obra precária e temporária, onde prospera o modelo de produção Agro-negócio. «As máquinas não fazem tudo»! Planeta alimentar Ensinaram-me na Escola Confederal de Educação Operária, nos arredores de Paris, que a história é como uma roda dentada, não anda para trás.

Assim sendo, não voltaremos a ter a agricultura do século XX, mas teremos uma agricultura que vai nascer das cinzas do actual modelo, que já está esgotado. Terá de ser uma agricultura tecnicamente evoluída mas sem tecnicismos, baseada na preocupação da conservação da terra e produção de alimentos de qualidade, na linha do pensamento de Hipócrates. Isto sublinha a necessidade de uma gestão adequada dos recursos do Planeta. As nascentes que conheci na minha infância estão secas. Tudo indica que este século será o da escassez da água (doce), isto quando a agro-produção utiliza cada vez mais água.

A tudo isto, acresce o esgotamento das matérias-primas. Enquanto que as necessidades alimentares vão continuar a crescer. Atenção a uma terra que já não tem minhocas e onde já não canta o rouxinol nem a cotovia. Em Portugal ainda persiste algum preconceito (para não dizer desprezo) em relação ao meio rural, o que não facilita a aproximação entre consumidores e produtores e se torna um obstáculo à valorização dos produtos da Agricultura Familiar através da «venda directa». Processo agravado, por um lado, com o crescente poder da ditadura das grandes superfícies e da destruição das redes de distribuição às suas mãos, e, por outro, de destruição das cooperativas agrícolas, a par da debilitação das organizações do movimento dos pequenos e médios agricultores. A «venda directa» iria permitir que consumidores conscientes «investissem» no futuro mantendo agricultores no território que produziriam não só alimentos com elevado valor nutricional, mas que prestariam também outros serviços de utilidade pública.

Os que lutam, Resistem e não Desistem têm, nas questões da terra, encontro marcado com o capital financeiro. Porque da Terra provém a Alimentação ou a Intoxicação.

 

in “O Militante” – Jan/Fev 2020