Etiquetas

“Alexandria tornara-se uma fornalha de excitação. Nas mesquitas pregava-se com furor a cruzada contra o cristão: nos bazares falava-se do estrangeiro como do cão maldito, da ave de rapina pior que o gafanhoto que devora a ceara, pior que a seca do Nilo; e ou fosse o fanatismo que despertasse, ou fosse a miséria que se queria vingar – todo o bom muçulmano se armava.

Nestas circunstâncias, de uma chufa de botequim pode nascer uma guerra de raças. E, pouco mais ou menos, assim sucedeu. Na manhã do dia 11, na Rua das Irmãs, uma das mais ricas do bairro europeu, um inglês, por um velho hábito, deu chicotadas num árabe; mas contra todas as tradições, o árabe replicou com uma cacetada. O inglês fez fogo com um revólver. Daí a pouco o conflito entre europeus e árabes, em pleno furor, tumultuava por todo o bairro… Isto durou cinco horas – até que, por ordens telegrafadas do Cairo, a tropa, até aí neutral, acalmou as ruas. E o resultado, bem inesperado mas compreensível, desde que se sabe que os árabes só tinham cacetes e que os europeus tinham carabinas – foi este: perto de cem europeus mortos, mais de trezentos árabes dizimados. Os jornais têm chamado a isto o massacre dos cristãos: eu não quero ser por modo algum desagradável aos meus irmãos em Cristo, mas lembro respeitosamente que isto se chame a matança dos muçulmanos”

Cartas de Inglaterra, Eça de Queiroz

 

Para olhar a novela jornalística “Venezuela”, agora em descanso mediático, talvez seja um bom ponto de partida a peça “Os ingleses no Egipto”, parte das “Cartas de Inglaterra”, de Eça de Queiroz, particularmente o episódio do “massacre dos cristãos”, o pretexto que serviu para reduzir a escombros Alexandria, às mãos do almirante Seymour, cumprindo ordens do chanceler Gladstone.

Século vinte corrido, mais uns milhões de humanos tombados nos  horrores  da guerra, a humanidade tende a não aceitar bem os brutais sacrifícios das grandes guerras.  Mas há razões diferentes para isso, os povos atacados pelo sofrimento em si, os povos   dos atacantes pela consciência do sofrimento causado,  o mundo do business porque uma guerra em larga escala e em economias desenvolvidas ou em vias de desenvolvimento não é bom para o negócio.

Isto obriga os países dominantes e com pistolas grandes a justificar a guerra como demanda do bem contra o mal, de alimentar a ideia de que há bombas inteligentes, tão inteligentes que só matam maus e a conter a escala das guerras, preferencialmente circunscrevendo-as  a conflitos  locais.

Para isso necessitam de centrais de informação mundial, gigantescas redes de comunicação, que garantam a narrativa do bem contra o mal e de um pretexto, um detonador, que justifique uma intervenção militar . A coisa, porém, no caso da Venezuela não corre de feição. Os locais insistem em não deixar criar o tal pretexto, demonstrando ver mais longe na arte da guerra do que muito cidadão “ocidental” (apesar da Venezuela ser mais a ocidente que a Europa, enfim, geografias) alimentado a jornais de referência.

Talvez seja tempo de olhar doutra forma para a contenda, na Venezuela é maior o apoio popular (em número, consciência e organização) ao Chavismo do que à oposição. Sendo verdade que a burguesia e parte da pequena burguesia apoiam o homem dos americanos (do momento), Gaidó, as classes populares estão, maioritariamente, com o governo. E estão com o governo porque, nos vinte anos que levam de poder bolivariano, tiveram acesso e têm acesso, com mais crise ou com menos crise, ao que nunca tiveram antes. Ora, esses em número são muitos mais e, intentona atrás de intentona, têm-se revelado mais conscientes e organizados do que se pensava. É esse o segredo Maduro. Se vai perdurar ou não o tempo o dirá, o Império tem recursos infindáveis.

Entretanto, nas catacumbas do Império, vão-se forjado o plano e as componentes do próximo pretexto.

 

Arouca, 9 de Junho