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Ao fazer uma dessas arrumações que acontecem, de tempos a tempos, nas casas habitadas, ou para mudar tarecos ou para se proceder a barrelas mais profundas, deparei, no fundo de um caixote de papelão, para onde fui empurrando uns velhos cardápios em desuso, com um livrinho, um destes livrinhos que passam despercebidos e a que ninguém dá valor mas que me despertou a atenção pelo título sugestivo “A Floresta Portuguesa”.

Sacudida a poeira que o tempo foi depositando, dei comigo a folheá-lo com a atenção de quem ainda dá valor às coisas velhas e aos ensinamentos do passado que tantas vezes são, levianamente, atirados para as gavetas da memória, senão mesmo para o lixo mas que, de quando em vez, voltam à ribalta, cheios de actualidade. Tanto mais após as tragédias de anos recentes, a que o território do nosso concelho não foi imune.

Trata-se de uma publicação de 1956, do engenheiro Gomes Guerreiro, inserida na Campanha Nacional de Educação de Adultos e que, apesar de sobre ele terem passado seis décadas, nos instrói, ainda, sobre a complexidade da floresta, as características do solo, as espécies florestais de maior expressão no nosso país (pinheiro bravo, sobreiro, castanheiro, carvalho, eucalipto…), a importância da preservação do equilíbrio ecológico que, alerta o manual, deve estar sempre presente.

Por isso não resisto em transcrever, pelo que acrescenta em sensatez e sabedoria, e pelo seu carácter premonitório, duas passagens da publicação, apelando à paciência de um ou outro leitor, a quem o tema diga alguma coisa.

A primeira, breve, à laia de prefácio, com um certo sainete de nostalgia romântica: “Que pena me faz a mim, filho do campo, criado ao murmúrio das águas de rega e à sombra dos arvoredos, que esta gente de Lisboa passe as horas e dias de repouso acotovelando-se tristemente pelas ruas estreitas, e não tenha um grande parque, sem luxo, de relvados frescos e árvores copadas, onde brinque, ria, jogue, tome o ar puro e verdadeiramente se divirta em íntimo convívio com a natureza! “.

A segunda, de maior fôlego, mas em tom coloquial, pedagógico, com uma pitada jocosa: “Deves estar surpreendido por ainda não me ter referido à cultura do eucalipto e já o ter feito à da azinheira, estando a cultura daquela espécie atualmente em constante progresso.

         Falemos pois dos eucaliptos ainda que em escala de importância florestal devesse referir primeiro os carvalhos, por certo as árvores mais tipicamente portuguesas e que hoje estão a ser relegados pelo homem para um lugar secundário.

         É possível que da última vez que conversamos tivesses ficado com a impressão de que eu não aceitava bem os eucaliptos, o que por certo acharás de mau gosto. Esta espécie, porém, não necessita do meu auxílio nem de qualquer outro para se firmar e aumentar a sua área de expansão; ela impõe-se por si, do ponto de vista económico que é, afinal, o mais importante.

         Vamos falar de eucaliptos, com prudência, sem lhes atribuirmos o valor que hoje é moda no nosso País.

O engenheiro silvicultor é essencialmente tradicionalista e usa de muita prudência quando se trata de mudanças na qualidade das árvores a plantar.

Começarei por te afirmar que o eucalipto é uma espécie maravilhosa (parece até que as maiores árvores do mundo são eucaliptos) e que existe uma variação tão grande que se citam para cima de quinhentas espécies botânicas com características diferentes. Para que faças uma ideia da riqueza que isso representa, basta dizer que o carvalho, a árvore mais divulgada em Portugal, possui apenas umas oito espécies botânicas. Que diferença para as cento e cinquenta de eucalipto que existem no nosso País!

Em face disto compreende-se perfeitamente que se tenham atribuído êxitos fabulosos aos eucaliptos. Pois se há sempre uma diferença maior ou menor entre cada espécie de eucalipto, que diferenças enormes não deverá haver entre todas elas!?

Não é para admirar que os viveiristas aconselhem o eucalipto como panaceia maravilhosa para todos os solos, todos os climas e todas as condições e que, aproveitando-se deste ambiente de euforia, apregoem a existência, nos seus viveiros, de árvores de crescimentos cada vez mais rápidos.

Creio até que anunciam já plantas que crescem à nossa volta tal como os pepinos nas noites luarentas de Agosto.

O que não oferece dúvida é que o eucalipto se adapta e vegeta com facilidade no nosso País, fornecendo grandes produções de material lenhoso, em especial aqueles que conheces e que te disse o ano passado chamarem-se Eucalyptus globulus e Eucatiptus rostrata ou camaldulensis. Todavia, em face da definição de floresta que demos inicialmente, parece que o eucaliptal não se ajusta a ela, de tal forma que a tua observação, de que sob um eucaliptal a vida quase desaparece, é perfeitamente justa. Não há arbustos, não há pequenos vegetais, não há solo florestal conforme definimos e muito menos há aquela fauna indispensável à manutenção das suas boas propriedades químicas e físicas.

Uma das explicações é que o eucalipto é não só um concorrente perigoso para a restante flora no que se refere à humidade mas também um perigo grande para regiões áridas como são as do Sul de Portugal, onde a flora indígena se habituou a uma economia e a um racionamento apertado no seu consumo.

Um eucaliptal consome humidade equivalente a uma chuvada de quatrocentos a quinhentos milímetros, ou seja, quatro mil a cinco mil metros cúbicos de água por ano e por hectare.

Encarado o problema do ponto de vista particular, parece que o eucalipto é hoje das melhores e mais rendosas utilizações do solo. Contudo, quando visto de um plano superior, não é sem um certo receio que se vê Portugal alargar cada vez mais a área coberta pelo eucaliptal de tal modo que hoje terá já ultrapassado os cem mil hectares. O engenheiro silvicultor pergunta com certa ansiedade se os terrenos de eucaliptos no Sul de Portugal manterão a fertilidade suficiente para que amanhã possam ser explorados com outra qualquer cultura.

Quando nos preocupa manter e aumentar a fertilidade do solo, não estaremos a introduzir e a alastrar uma cultura que o deixa menos fértil? Além disso, se surgir uma praga, haverá meios de a dominar, em face do artificialismo da sua cultura?

Naturalmente que problemas como estes não pertencem ao âmbito das preocupações do particular mas sim ao Estado que tem a seu cargo vigiar a defesa e valorização do património florestal do País.

Posto o problema neste ponto, teremos que concluir que, se o eucalipto não é uma árvore para arborizar impensadamente terrenos declivosos, áridos e delgados, o mesmo não acontece em solos fundos e frescos, à beira de linhas-de-água, que não são muito frequentes no nosso País. Foi dentro deste princípio que achei boa a tua ideia de plantares duas cortinas de eucaliptos na Corte do Brejo. Conseguirás assim obter uma quantidade muito apreciável de lenhas que tanto rareiam hoje depois que vocês arrotearam quase todos os terrenos que antes as forneciam.

Repara que, enquanto um pinhal pode dar uma produção anual de seis a oito esteres de material lenhoso, o eucaliptal atinge quinze a dezoito esteres. Só o choupal se lhe pode comparar mas exige, para isso, maiores cuidados e uma escolha criteriosa das formas com o melhor rendimento.

Se eu ponho o problema do eucalipto com cores um pouco sombrias é porque, de há dez anos para cá, a sua área tem aumentado de tal forma que, continuando neste ritmo, dentro de pouco tempo ultrapassará a de todas as outras espécies florestais reunidas. Como a essa expansão não tem presidido qualquer critério tecnicamente defensável nem um estudo das consequências futuras para a fertilidade do solo e para a colocação do enorme volume de material lenhoso produzido, há que encará-la com certo cepticismo.

A silvicultura não se compadece com improvisos. Não é como no sector agrícola onde de um ano para o outro se pode “emendar a mão” e mudar de semente ou mesmo de cultivo. Em silvicultura os erros pagam-se caros e, quase sempre, injustamente, pelas gerações vindouras que neles não tiveram qualquer espécie da interferência.

Estávamos em 1956. Volvido mais de meio século o resultado está à vista. Proliferam, sem qualquer controle, os eucaliptos e as acácias, a indústria dos incêndios prospera, tomam-se, por pressão das circunstâncias, algumas medidas avulsas, desgarradas, de eficácia duvidosa e de curto prazo, penalizam-se os poucos e que são os velhos que ainda resistem na amanho da terra. E o país há-de continuar a arder.

António Óscar Brandão

23/04/2019