Foi através dos cálculos «científicos», com um «ar de economia», de monsieur Abeille que a União Europeia estabeleceu regras e tratados, castigando populações de países inteiros «por défice excessivo»

Desfile dos «coletes amarelos» em Estrasburgo, 3 de Dezembro. CréditosVincent Kessler / Reuters
Quem não viveu o drama do défice de 3%? Quem não ouviu, horas e horas a fio, economistas e políticos a martelarem consciências com esse número mágico dos 3% que justificava cortes em tudo e o apertar do cinto do «Estado Social», para alcançar esse Santo Graal, nem uma décima a mais?
Alguém que ousasse levantar (como o PCP), a interrogação «mas porquê 3%?», número mítico inserido no Pacto de Estabilidade e no Tratado Orçamental da União Europeia, (assinados pelo PS, PSD e CDS), apenas obtinha o silêncio devido à impertinência, acompanhado por um esgar de desprezo de sábios e peritos da TV.
Ora Bagão Félix, num curioso artigo publicado no Público de 23de Novembro de 2018, resolveu esclarecer a história do tecto dos 3% do défice e dos 60% da dívida (que daí advém) impostos pela União Europeia, acrescentando «creio que que a maioria dos governantes europeus não saberão porque razão são estes e não outros os valores da fronteira entre o cumprimento e o afrontamento das regras».
Convenhamos que bastava o currículo do autor – ministro da Segurança Social e do Trabalho de Durão Barroso (2002-2004), e das Finanças e da Administração Pública de Santana Lopes (2004-2005) – para as suas declarações levantarem um espanto escandalizado.
Mas mais grave do que a ignorância de governantes europeus que debitam números icónicos sem sequer os perceberem, a verdade é que os 3% do défice continuaram a ser justificação para medidas gravosas que afectaram muitas famílias atiradas para a miséria e para o desemprego, agora também sujeitas a outro indicador impreciso, o «défice estrutural», que os próprios economistas dizem não saber bem calcular.
Passemos então ao que escreveu o ex-ministro do Trabalho e das Finanças:
«No já longínquo 1981, um alto funcionário francês da Direcção do Orçamento, de seu nome Guy Abeille, foi encarregado de propor um critério e uma bitola fáceis de entender para que o então presidente François Mitterrand pudesse contrapor limites orçamentais aos ministros mais gastadores.
Em 2012, o tal senhor Abeille deu uma entrevista ao jornal Le Parisien onde descreveu alguns aspectos curiosos e insólitos daquela encomenda. Mitterrand pediu-lhe para com inventividade e sagacidade alcançar um número adequado que servisse esses propósitos e que “parecesse economia” (sic). Ao jornal, o pai dos 3% resumiu: “Cheguei a 3% em menos de uma hora e sem nenhuma reflexão teórica”.
[…] Assim nasceu a bitola dos 3% crescentemente tornada sacrossanta, indiscutida, solidificada, “tecnicamente” consolidada… que depois viajou para Bruxelas, onde foi adoptada e abençoada pelos líderes europeus.»
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