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Era Maio do ano 68, num tempo
em que na cidade se votava à direita e as pessoas pensavam à esquerda,
num tempo em que todos os sonhos também eram de esquerda,
mas de uma esquerda à esquerda da esquerda, tal como as contas de multiplicar
em que três vezes três são nove noves fora nada, num tempo
em que o nada também era alguma coisa, pois empurrado pelo vento
a outras cidades e pessoas chegou, inclusive a minha casta e burguesa namorada
que de um dia para o outro passou a ser igualmente de uma esquerda
que se podia multiplicar por outras esquerdas até não ser nada, e daí
recomeçar novamente à esquerda, num tempo
em que tudo era assim mesmo.
Com efeito, ela tanto dizia ao mesmo tempo uma coisa
como o seu contrário, o que desembocava em qualquer coisa
como um materialismo subjectivo, embora ela recusasse o sujeito –
e tinha razões teóricas para isso – queixava-se de que a vida era um tédio,
sendo certo que o que ela queria (e, já agora, eu também) era festa,
o que a fez atirar decisivamente para os braços da reacção – sim, eu!
Quantas agendas perdemos, enquanto nos debruçávamos sobre a relva,
a fumar cigarros atrás de cigarros e a ouvir música de protesto vinda da rive gauche do Tejo!
Quantos números errámos na cabine do infinito, ocupando
as mãos no corpo um do outro e desocupando as nossas cabeças
com filosofia vegetal e pensamentos eróticos!
Eu próprio começava encontrar razões para rupturas existenciais entre a teoria e a prática.
O problema é que a ligeireza da realidade das nossas existências já tinha teorizada por alguns ortodoxos – depois do falhanço dos que tinham tentado praticar a teoria.
E o drama estava aí: nessa incapacidade (do real para se adaptar à perfeição das ideias).
Não sei se fiz isso de propósito: o que é certo é que não pude evitar
os conflitos improdutivos da carne. Então refugiei-me no território do espírito.
Impus-me regras morais. Cedi ao Hegel, como se o caminho do homem
avançasse no sentido do progresso de forma automática, sem pôr problemas a quem vive.
Quantos sermões de montanha tive de engolir para chegar ao jejum da mística?
O que eu andei para conseguir colar o meu primeiro cartaz: mas, em boa verdade,
os cartazes nunca me convenceram. Por fim, refugiei-me na linguagem.
Pensava que ela me libertaria das contingências do ser.
Avancei por dentro da palavra como se ela fosse um café, à procura
de um balcão limpo de fumo e de conversas, onde não tivesse outro espelho
para além desse emoldurado pela palavra espelho.
Tropeçava sempre à entrada: ou não me deixavam passar. “Está fechado”, diziam.
E voltava atrás, para essa rua cheia de sol, com o calor insuportável do verão,
sem saber onde encontrar os caminhos que me pudessem levar à revolução.
O Inverno seguinte, porém, as ruas já estavam todas limpas:
a velha ordem regressaria rapidamente à cidade, e até a minha Dandy que,
às três pancadas, me roubou a virgindade na Política, na Arte e no Sexo,
era já a mais esquecida das amadas, para hoje ser a mais lembrada!
É que, cinquenta anos depois, ainda me ficaram alguns porquês:
Dandy, porque não me roubaste também o cigarro da eternidade, porque
não o apagaste no chão da vida, porque não me abriste o caminho do erro,
que é o mais certo dos caminhos?