A descentralização constitui uma obrigação constitucional. O Artigo 6.º da Constituição da República Portuguesa inscreve a «descentralização democrática da administração pública» como um dos princípios fundamentais de organização do Estado.
Descentralizar é uma exigência democrática, de transparência e de participação.
A consagração do poder local, uma das principais conquistas da Revolução de Abril, foi, ao longo das últimas décadas, responsável por ganhos essenciais na qualidade de vida das populações e no progresso geral do país, constituindo igualmente um importante factor de aprofundamento e vitalidade do regime democrático.
Descentralizar implica aproximar os recursos, o poder e a decisão, das populações, servindo-as melhor e garantindo uma maior e mais eficaz participação das mesmas.
A iniciativa do Governo de alteração das competências das autarquias locais, está longe de se poder qualificar como uma verdadeira descentralização. Desde logo, porque continua a pôr de parte a instituição em concreto das regiões administrativas, prevista na Constituição, que desde 1997 está dependente de decisão favorável em referendo nacional, condição imposta por acordo de revisão constitucional entre o PS e o PSD, liderados por António Guterres e Marcelo Rebelo de Sousa. Por outro lado, porque rejeita reverter o processo antidemocrático de extinção de freguesias do Governo anterior de Passos, Portas e Relvas, continuando a exigir-se a devolução da decisão às populações e órgãos autárquicos locais, na correcção da anormalidade política e administrativa então produzida.
Para uma efectiva descentralização é preciso garantir várias condições. Dela deve resultar a melhoria efectiva do serviço prestado às populações; a garantia da universalidade de direitos fundamentais como o acesso à educação, à saúde ou à protecção social; a aplicação das novas competências a todas as autarquias; a real autonomia para o exercício das competências; e, claro, a garantia de meios financeiros adequados.
Nada disso está em condições de ser garantido neste processo, que é por isso um mero processo de transferência de responsabilidades e de desresponsabilização da administração central e do Governo, em importantes matérias para a vida dos portugueses.
De resto, as transferências de competências para algumas autarquias, designadamente na área da educação, em particular durante o Governo Sócrates, como aconteceu com o município de Loures, são disso um bom exemplo. Acontece hoje que as verbas para trabalhadores auxiliares de acção educativa e administrativos transferidas pelo Ministério da Educação, relativamente às escolas que passaram para a responsabilidade do município, são comprovadamente insuficientes. A autarquia suporta o custo acrescido, contratando mais trabalhadores para fazer face às evidentes necessidades, desde logo para compensar situações de baixa, licenças e outras circunstâncias. E isto já para não falar de todas as necessidades de suporte nos serviços de recursos humanos, saúde ocupacional, entre outros, para acompanhar e apoiar mais umas centenas de trabalhadores.
Outro exemplo de envolvimento da autarquia de Loures em funções da administração central foi a consagração de uma dezena de técnicos da Câmara, à realização do atendimento integrado de acção social. O resultado disso é que, para além destes técnicos terem sido retirados ao trabalho directo do município, hoje a Segurança Social não tem no concelho atendimento integrado com técnicos seus, estando esta área dependente dos técnicos da Câmara e de IPSS.
A substituição do Estado nas suas competências pelas autarquias é, aliás, hoje já uma prática corrente perante a absoluta ausência de investimentos e muitas vezes de verbas para questões de funcionamento corrente. Desde reparações e benfeitorias várias em equipamentos públicos, até à substituição de funcionários de segurança social ou à «inevitável» cedência de terrenos para esquadras ou centros de saúde, muito é já na prática suportado pelas autarquias locais.
Uma questão essencial é a garantia de que a transferência de competências não introduz ou agrava as desigualdades em direitos fundamentais como a educação, a saúde, ou o apoio social. De facto, estas são matérias em que é indispensável manter uma gestão nacional, da responsabilidade da administração central, sob pena de agravarmos ainda mais as desigualdades já impostas por anos de políticas de direita nestas áreas e que continuam a não ser invertidas pelo actual Governo do Partido Socialista. Para além disso, a transferência de competências nessas áreas vai implicar uma ainda maior desresponsabilização do Estado. E a indispensável universalidade destes direitos não pode ficar condicionada pela prioridade que lhes seja dada por esta ou aquela autarquia, ou sujeita à tentação de interferência na definição de conteúdos como os currículos, as prioridades e procedimentos terapêuticos ou na atribuição de apoios da segurança social.
As notícias vindas a público acerca das negociações entre Governo e PSD, apontam ainda no sentido de não estar garantida a universalidade da aplicação das competências a todas as autarquias, agravando ainda mais os riscos de tratamento desigual dos cidadãos e de descontinuidade no acesso aos direitos fundamentais.
Por outro lado, descentralizar implica atribuir recursos e garantir a autonomia na condução das políticas. Ora o que está em cima da mesa em muitas áreas da proposta do Governo não é qualquer tipo de efectiva capacidade de definição de prioridades políticas (que nalguns casos, como já se assinalou, nem sequer devem estar na competência das autarquias), mas apenas uma espécie de «contratação» das autarquias como prestador de serviços para manutenções, reparações, construções, ou contratação de recursos humanos.
Recentemente, na cimeira das áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, amplamente noticiada, um documento de contributo para a questão do processo de competências a atribuir às autarquias (que, aliás, não teve o acordo das autarquias presentes de maioria CDU) incluía a proposta de poderem estas definir os horários de funcionamento dos centros de saúde. Questionou-se como é que isso se faria se para se concretizar seria necessária a colocação adequada de médicos, enfermeiros e outros técnicos de saúde, da responsabilidade do Ministério da Saúde. A questão ficou obviamente sem resposta, deixando bem evidente a precariedade deste processo.
Dito tudo isto, quando chegamos à abordagem da questão dos meios financeiros para suportar estas novas competências, o caso agrava-se mais ainda. Certamente não por acaso, nunca chegaram a ser disponibilizados (e duvida-se que existam) os estudos económico-financeiros que deveriam ter servido de base à tomada de decisões nesta matéria e obviamente à consideração dos justos recursos a transferir.
A proposta de lei de finanças locais apresentada pelo Governo confirma essas perspectivas negativas. Não garante o valor reforçado da lei para a pôr a salvo de sucessivos incumprimentos em cada lei do orçamento do Estado; consagra legalmente os sucessivos incumprimentos à actual lei e difere por mais cinco anos o momento do cumprimento; não garante uma percentagem mais elevada e garantidamente respeitada no que diz respeito à participação das autarquias nos impostos do Estado; introduz uma nova participação na receita do IVA que está por definir e que se espera não venha a ser uma nova armadilha política para as finanças dos municípios, como é actualmente a possibilidade de variação na taxa do IRS a cobrar em cada concelho.
Mas se isto é assim em relação às regras gerais de financiamento das autarquias, pior ainda são as perspectivas no que diz respeito às competências em concreto. É que se a regra vai ser a transferência da média de financiamento dos serviços públicos dos últimos anos, o desastre é total. Os serviços públicos têm estado sujeitos a uma cada vez maior exiguidade de recursos, à diminuição e envelhecimento do seu quadro de pessoal, à deterioração dos seus instrumentos de trabalho. E transferir esses níveis de funcionamento para as autarquias não vai certamente contribuir para a melhoria do serviço às populações.
Mais ainda no que diz respeito ao investimento. A carência de investimento em infraestruturas (escolas, centros de saúde, unidades sociais, património cultural, etc.) é dramática em muitos serviços e concelhos do país.
Recentemente foi divulgado que, em relação à conservação dos castelos (igualmente matéria a transferir para os municípios), o investimento de referência para as verbas a transferir para os municípios, correspondente ao gasto do Estado dos últimos anos era de… zero euros!
Tomemos outro exemplo. O caso das escolas. Não com uma previsão do futuro, mas com factos actuais. Em 2008 o executivo PS na Câmara de Loures, a mando do Governo PS/Sócrates, aceitou a responsabilidade pela manutenção corrente e contratação de pessoal auxiliar e administrativo da maioria das escolas básicas 2.º e 3.º ciclo – 9 em 12. Supostamente as três que ficaram de fora aguardavam obras indispensáveis ao seu funcionamento. Ao fim destes 10 anos o que se verifica é que: nenhum investimento relevante foi feito nem nas três escolas autonomizadas nem nas restantes; os 20 mil euros por ano (!) transferidos para a manutenção de cada escola são de todo insuficientes.
Uma estimativa feita, em 2008, pelos serviços da Câmara, em relação ao conjunto das escolas EB23 no concelho, apontava para necessidades de investimento de mais de 36 milhões de euros. Dez anos passados de ausência de grandes investimentos e natural degradação das infraestruturas, as necessidades serão sem dúvida superiores. E será que alguém acredita que verbas dessa dimensão vão ser agora disponibilizadas para que os municípios façam as obras que passarão a ser da sua responsabilidade?
Vários governos e também o actual, têm remetido o fundamental dos investimentos para os fundos comunitários, o que, desde logo, deixa a satisfação das necessidades do país dependentes das orientações para a aplicação desses fundos a partir da União Europeia, mais preocupada em garantir avultadas transferências para os grandes grupos económicos transnacionais. Para além disso, há regiões, como é o caso da Área Metropolitana de Lisboa, que, por estatisticamente ultrapassarem os rácios europeus, estão ainda mais segregadas do acesso a verbas dos vários quadros comunitários, tendo como consequência a absoluta rarefacção de investimentos, por exemplo nas áreas da educação ou da saúde.
Tal como está, o processo não dá nenhuma garantia de vir a melhorar os serviços públicos e a qualidade de vida das populações. Não basta argumentar com a reconhecida capacidade de as autarquias multiplicarem os recursos em mais investimento, por comparação com a administração central, para garantir que seja possível recuperar e melhorar serviços públicos em regra completamente depauperados e sujeitos, há décadas, à asfixia financeira, humana e de equipamentos. Mais do que isso, o peso de novas responsabilidades poderá vir a exigir, ainda mais do que já acontece, o desvio de recursos das actuais competências, degradando o que hoje funciona bem.
Acresce que as autarquias foram sujeitas nos últimos anos a um garrote financeiro e estrutural que debilitou profundamente os seus quadros e capacidades de resposta, situação que está longe de estar recuperada.
A atribuição de responsabilidades às autarquias, num quadro de grandes necessidades e escassez de recursos para investimento, vai significar uma enorme pressão para os municípios. Nos últimos meses são frequentes as abordagens de professores, pais, profissionais de saúde e população em geral, no sentido de aguardarem com expectativa a passagem de responsabilidades para as câmaras na esperança de verem finalmente realizados os investimentos por que tanto anseiam.
Da mesma forma, o Governo não deixará de apontar o dedo às autarquias como responsáveis por um conjunto de investimentos que a administração central nunca fez. O exemplo da limpeza de terrenos para a prevenção de fogos florestais é sintomático. De repente, os municípios passaram a ser responsabilizados por tudo o que possa acontecer na limpeza de terrenos, sem que lhes tenham sido dados meios para isso. Como se fosse possível recuperar rapidamente os efeitos de anos de uma política florestal desastrosa e ao serviço dos principais grupos económicos do sector. O Ministro da Agricultura chegou mesmo a dizer que se as autarquias fizerem menos festas já têm recursos para a limpeza de terrenos. Uma amostra populista do discurso que passaremos a ter se esta «reforma» se concretizar!
Trata-se assim igualmente de uma profunda manobra de transferência de responsabilidade política para as autarquias e de desresponsabilização dos governos e da administração central. PS e PSD, principais responsáveis por sucessivos governos que degradaram serviços públicos e privatizaram diversas funções do Estado, parecem estar prontos a aprovar legislação que garanta a desresponsabilização permanente da administração central sobre direitos fundamentais dos portugueses.
E como tudo aponta para que isso possa acontecer sem significativo acréscimo de despesa corrente ou de investimento ou mesmo com a sua redução, tal significa que aumenta a disponibilidade para continuar a alocar os recursos do orçamento de Estado às prioridades do poder económico, em vez de as colocar ao serviço das populações e do país.
É preciso ainda lembrar que não se trata só de atribuir ou não recursos financeiros necessários. É que a estrutura das Câmaras não está preparada para lidar com um elevado número de novas competências e todo o seu desempenho. O seu reforço é indispensável por exemplo na área dos recursos humanos ou da saúde ocupacional, mas também nas áreas técnicas relacionadas com obras e equipamentos; a falta dessa capacidade empurrará muitas das tarefas a desempenhar para uma generalizada privatização, o que provavelmente também é o objectivo dos responsáveis desta iniciativa.
É evidente também um cada vez maior afastamento das competências originárias da administração local, várias delas, aliás, total ou parcialmente entregues ao sector privado.
Este enorme logro político precisa de ser combatido. Pode ter sérias consequências na credibilidade e na capacidade das autarquias. Não serve o país nem as populações.
in”O Militante” Maio/Junho de 2018