O impacto da Revolução de Outubro abalou o mundo, como afirma o jornalista norte-americano John Reed no título do seu conhecido livro, referindo-se aos seus primeiros dez dias.
Todavia, pode afirmar-se que a Revolução russa de 1917, com a sua ideologia e política de solidariedade internacionalista as ondas de choque das suas realizações em todas as esferas da sociedade continuaram a abalar o mundo por largas décadas e a provocar avanços progressistas profundos na história da humanidade até à derrota do socialismo na URSS, em 1991.
Não é possível falar-se da conquista dos direitos laborais e sociais dos trabalhadores na Rússia com a revolução, e nos países que posteriormente empreenderam a construção do socialismo, bem como dos direitos conquistados nos países capitalistas pelos trabalhadores sob a influência dessa revolução, desligando-os de outras conquistas fundamentais dos trabalhadores e dos povos com origem na mesma força propulsora.
Até porque o principal e primeiro direito que os operários e os trabalhadores conquistaram com a revolução que fizeram foi o direito de enquanto classe assumirem através do partido da classe operária o próprio poder político em todas as suas instâncias e assim decidirem do seu destino e o de todo o povo.
Os revolucionários russos partiram da ideologia de Marx e Engels, da herança histórica da experiência da Comuna de Paris que, desenvolvidas por Lénine puseram em prática. À época o marxismo era uma doutrina amplamente divulgada e assumida por parte do proletariado de vários países, inclusive dos mais desenvolvidos, e o êxito da sua aplicação prática na Rússia impulsionou a sua difusão e a sua compreensão e despertou entusiasmos e expectativas com consequências mobilizadores e de organização nas lutas laborais e políticas travadas pelo operariado europeu e americano, traduzidas também em acções de apoio e solidariedade para com a revolução na Rússia.
As primeiras medidas do poder revolucionário visam pôr em prática aspectos fundamentais inscritos no Manifesto do Partido Comunista de 1848 e nos documentos programáticos da AIT-Associação Internacional dos Trabalhadores.
Quatro dias após o assalto ao Palácio de Inverno e depois de promulgados os decretos da paz e da terra é publicado o decreto das 8 horas de trabalho diário no máximo; prevê interrupções do trabalho para descansar e tomar as refeições, dia e meio de descanso semanal, férias pagas, interdição do trabalho a menores de 14 anos, e um máximo de 6 horas de trabalho para os jovens entre os 14 e os 18 anos. A lei salvaguarda ainda o emprego das mulheres durante o período da gravidez e durante o primeiro ano de vida dos filhos; licença de maternidade de 8 semanas antes e 8 semanas depois do parto; dispensa para amamentação e subsídio de aleitamento; medidas especiais de protecção e apoio às mães adolescentes.
É consagrado o princípio de para trabalho igual salário igual e o fim das discriminações entre homens e mulheres.
Estamos a falar de uma lei publicada há 100 anos num país com mais de 100 milhões de habitantes na sua grande maioria analfabetos e onde a revolução acabava de derrubar um poder e uma sociedade semi-feudais. Não seria necessário mais nenhum exemplo de direitos laborais, embora haja muitos mais, para exemplificar os objectivos de justiça social da Revolução russa e para sobressaltar a consciência de centenas de milhões de homens, mulheres e jovens por esse mundo fora.
As convulsões resultantes do envolvimento da Rússia na Primeira Guerra Mundial seguidas da guerra civil e da invasão imperialista criaram à jovem revolução grandes dificuldades na concretização dos seus objectivos, e imensa miséria e sacrifícios ao povo russo. Mas todos esses obstáculos foram sendo ultrapassados e os direitos fixados nas leis entraram no domínio da sua aplicação prática.
As mulheres russas, que haviam entrado em força no trabalho das fábricas devido ao envio dos homens para a guerra, tiveram um papel da máxima importância nas grandes greves e manifestações que antecederam a revolução. Exigindo o fim da guerra, pão e paz. Foram as primeiras no mundo a conquistar o direito de elegerem e serem eleitas. Alexandra Kolontai foi a primeira mulher ministra no mundo, assumindo em 1917 a pasta dos assuntos sociais. O aborto foi despenalizado por decreto de 1920. E a prostituição deixou de ser penalizada sendo-o apenas o negócio em torno da sua exploração. Referindo-se à participação das mulheres na revolução Lénine afirma: «sem elas não teríamos triunfado».
Com o decorrer da construção do socialismo os direitos laborais e sociais alargaram-se rapidamente nos países onde se iniciara essa construção. O analfabetismo foi erradicado, o direito ao trabalho foi garantido, o pleno emprego foi conseguido de forma estável, a saúde e os medicamentos gratuitos para todos os cidadãos tornaram-se realidade, bem como a protecção na invalidez e na velhice. O direito à habitação veio a ser concretizado e os gastos com esta na URSS fixaram-se em média nos 2% do salário.
A Revolução russa assumiu desde o primeiro dia um papel de vanguarda mundial na garantia por parte do Estado de direitos económicos e sociais fundamentais aos cidadãos.
O ódio de classe inspirado pela revolução nas classes possidentes do mundo inteiro revelou-se de imediato no apoio à contra-revolução interna durante a guerra civil e na invasão da Rússia por parte das principais potências imperialistas. Vencidos na guerra, o medo do efeito de contágio através do exemplo das conquistas obtidas pelos trabalhadores com o socialismo juntou-se a esse ódio. Na verdade, milhões de excluídos da participação social e política tornaram-se cidadãos de corpo inteiro e activos na defesa dos seus direitos e das suas pátrias.
O terremoto de longa duração continuou a abalar o mundo. A URSS fortaleceu-se de tal modo com a construção do socialismo que veio a assumir o papel decisivo na derrota da barbárie do nazi-fascismo na Segunda Grande Guerra Mundial e a criar equilíbrio estratégico militar entre os dois sistemas sociais em confronto. O campo socialista e o campo capitalista. Com a solidariedade internacionalista dos países socialistas nasceram e desenvolveram-se movimentos de libertação nacional que levaram à queda dos impérios coloniais na Ásia e em África e à libertação de dezenas de povos das garras da influência imperialista.
Logo nos primórdios da revolução a sua influência nos países capitalistas levou à constituição de partidos comunistas e outros partidos revolucionários e progressistas e fortaleceu os sindicatos e a sua capacidade reivindicativa.
A classe operária portuguesa não fugiu à regra. A informação que chegava em regra através dos jornais burgueses e difusa foi mesmo assim suficiente para gerar e mobilizar uma corrente de apoio e solidariedade para com a Revolução russa e ensaiar a criação de organizações revolucionárias. Foi sob o seu impulso que um núcleo de revolucionários, quase todos sindicalistas, fundou o PCP em 1921.
Pouco depois da fundação do Partido, Francisco Perfeito de Carvalho, primeiro Secretário-geral da União Operária Nacional (UON) fundada em 1914 e com ligação ao PCP, partiu clandestinamente para Moscovo, em Junho de 1922, enviado pela CGT a fim de participar no congresso constituinte (I) da ISV, levando a incumbência de fazer um relatório sobre aquela realidade a apresentar à central sindical quando regressasse a Lisboa. De Berlim, no regresso, enviou à CGT e ao PCP as regras para a recolha de apoios solidários para com o povo russo, estando assim ligado à criação do organismo que se viria a designar Socorro Vermelho.
Foi um sindicalista, Carlos Rates, que viria a ser o primeiro Secretário-geral do PCP eleito no I congresso do Partido, em 1923, e que mais tarde abandonaria o Partido passando a trabalhar no Diário da Manhã, jornal oficial do regime fascista, quem depois de uma visita que fez à pátria do socialismo escreveu e editou um livro A Rússia dos Sovietes, no qual pela primeira vez se divulgou com alguma sistematização aspectos da realidade soviética e um conjunto de problemas suscitados pela Revolução russa de 1917.
Foi outro sindicalista, Bento Gonçalves, presidente do Sindicato do Arsenal da Marinha, quem chefiou a delegação portuguesa às comemorações do 10.º aniversário da revolução, realizadas em Moscovo, no ano de 1927. Na ocasião ainda não era membro do Partido, e afirma, na intervenção que ali fez, que representava comunistas, socialistas, anarquistas e outros. Mas viria a sê-lo a curto prazo após o seu regresso.
Bento Gonçalves foi eleito Secretário-geral do Partido na conferência de organização de 1929 e foi ele que conduziu a reorganização que veio dar ao partido as características do Partido de Novo Tipo preconizadas por Lénine para os partidos comunistas. Bento Gonçalves terá sido o primeiro dirigente operário português a adquirir um conhecimento aprofundado da teoria do marxismo-leninismo e a ser capaz de a interpretar e transpor para a acção concreta. Sob a sua direcção o Partido Comunista Português ficou preparado para actuar na clandestinidade e resistir e combater o fascismo até à sua derrota em 25 de Abril de 1974.
A influência da Revolução russa na reorganização do operariado mundial não foi de menor importância para a conquistas de direitos laborais sociais e políticos nos países capitalistas do que o exemplo dos direitos proporcionados pelo socialismo.
Grandes greves e outras acções de massas, em Portugal dirigidas directamente ou influenciadas pelo Partido durante todo o período fascista, e durante a própria Revolução do 25 de Abril de 1974 levaram o patronato a assinar convenções colectivas com melhores horários, salários, condições de higiene e saúde no trabalho e garantias de protecção social, obrigando os governos a transporem esses direitos para as leis gerais e, no caso português, os deputados constituintes a consagrá-las na Constituição de 1976.
A dinâmica do exemplo e o medo de que os trabalhadores e os povos optassem pelo sistema socialista pressionaram os governos dos países capitalistas desenvolvidos a alargar as funções sociais do Estado, em particular nos domínios da saúde, da protecção social no desemprego, na velhice, na educação e na cultura.
Nos dias de hoje, 100 anos depois, numa época em que por força da derrota do socialismo na Europa de Leste e na URSS nos anos 89/91 o imperialismo se encontra numa contra-ofensiva de recolonização e regressão social mundial, há um retrocesso generalizado das conquistas, e condições de trabalho mais penosas, algumas semelhantes às do século XIX são impostas de novo aos trabalhadores.
Focos de guerra acendem em várias partes do mundo, atingindo de novo a Europa, e alargando-se na Ásia e em África. A morte e a fome instalam-se em vários países ao som dos tambores de guerra rufados pela comunicação social dos grandes grupos económicos. O capitalismo volta a estimular uma possível via neofascista para a situação de crise profunda em que se encontra.
Mas há povos que resistem às agressões, outros que se reorganizam e acumulam forças e estabelecem alianças para enfrentar as forças do retrocesso civilizacional.
Às forças do trabalho revolucionárias e progressistas cabe-lhes também a reorganização, o reforço e a acção, tendo presente que os ideais e objectivos do socialismo como futuro para a humanidade continuam válidos. E o exemplo da Grande Revolução de Outubro de 1917 que demonstra que a vitória dos explorados e dos povos é possível mesmo em condições extremamente desfavoráveis à sua luta.
in “O Militante” – Maio/ Junho de 2017