Isto começa assim. Amanhece. Como um rebanho acamado num redil de fantasia, a pequena tribo de homens, mulheres e crianças, acorda sonolenta e orvalhada do sereno da noite. O tecto metafísico de todos cinge-se apenas ao céu, de um azul tão limpo como os olhos de uma vitela. E, numa espécie de mágica imprevista, começa a haver movimento, esforço e ternura no lugar. A vida, nesse lugar, inicia-se todos os dias com a humanidade de pincéis na mão pintando uma tela soterrada, num ritmo de eternidade, seguindo o seu caminho de perseverança no útil e no inútil. A cor da vida não tem importância nenhuma.
Durante toda a manhã, ninguém fala. Ruminam calados e deslumbrados a beleza. Eles sabem que o relevo dos montes, a linha das planícies, a fundura dos horizontes, não devem ser acidentais de fora, descobertas momentâneas da retina, mas progressivas aquisições da alma para a sua última plenitude. Que na meditação do cenário devem os actores ir classificando o seu papel. Esses homens e mulheres, em cuja massa carnal estão fundidos pensamentos e qualidades que roçam a perfeição, ou que por essas qualidades e pensamentos optaram deliberadamente, não se distinguem pela cor da pele. Há-os brancos e negros, amarelos e vermelhos, e até pardos. São poucos os acobreados, mas também os há. Talvez nenhum deles seja capaz de concretizar o que sente, numa descrição prolongada. No entanto, decidem-se, por fim, a avançar em conjunto. A cor da pele não tem importância nenhuma.
Ao fim da manhã, o barro de que são feitos estará coberto de mais alguns milímetros de promissora verdura humana. Como de facto, na verdura se formam os povos. Precisando a verdura de crescer, cada povo continua nela as suas fainas e as dores. Daí, a charrua se transforma em barco, o barco em caravela, até que toda a líquida imensidão dos oceanos passa também a ser lavrada como se terra fosse. E a tribo de há pouco, desdobrada em povos agora, sem fazer qualquer distinção entre leivas e ondas, alarga às cinco partes do mundo a expressão da sua vida natural. Essa continuação de suor a todo o orbe é a marca mais significativa de cada povo. Deste modo, todo o mundo que é mundo, aos povos pertence. Assim, consoante o génio e o número, tomam-se territórios. Estabelecem-se fronteiras. Lá dentro, recheia-se o espaço de aldeias, vilas e cidades. Dispõem-se estruturas, instituições, serviços, e cada povo vive num lugar à parte a que dá, por sua vez, o nome de Pátria. Esta desfraldará, por fim, os seus símbolos. O mais importante é uma bandeira de pano colorido. A cor de cada bandeira não tem importância nenhuma. Continuar a ler