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Economista entende que consolidação muito exigente não permite pagar a dívida.
Frequentemente apelidado da “voz da consciência” da economia, Amartya Sen teme o impacto que as medidas de austeridade postas em curso por vários Governos europeus, entre os quais Portugal, possam ter na economia e nas conquistas do Estado social.
O prémio Nobel das Ciências Económicas em 1998 esteve em Portugal para receber o doutoramento honoris causa pela Universidade de Coimbra e falou ao PÚBLICO sobre os desafios que a crise da dívida europeia está a colocar aos países e à própria união monetária, bem como sobre o seu novo livro, A Ideia de Justiça.
Na conferência que deu, na segunda-feira, na Faculdade de Economia de Coimbra, disse que, actualmente, há “uma grande tentação de ter um zelo intransigente” quanto à disciplina orçamental, naquilo que caracteriza como uma abordagem de “sangue, suor e lágrimas”. Acha que aqueles países europeus, como Portugal, que estão a impor pacotes de austeridade, estão a seguir no caminho errado?
Não estava particularmente a falar de Portugal. Não sei o suficiente a esse nível. Mas há uma visão a nível europeu de que não só a dívida pública deve ser eliminada – ou, pelo menos, reduzida drasticamente -, mas também que isso deve ser feito imediatamente. É muito difícil para cada país afastar-se desta visão europeia geral, até porque os mercados estão a pedir isso. Os países não terão, por isso, grande possibilidade de escolha. Mas esta ideia [de austeridade] não é inteiramente correcta. As reduções de défices gigantes que ocorreram no passado, como por exemplo a dívida contraída por vários países europeus junto da América durante a Segunda Guerra Mundial, foram possíveis apenas numa situação de grande crescimento económico, que é sempre uma altura propícia à redução da dívida. Do mesmo modo, quando Bill Clinton se tornou Presidente dos EUA, o país estava com um elevado nível de dívida e, quando ele deixou de ser Presidente, já não tinha, o que se deveu a um crescimento económico elevado.
Mas agora não há esse crescimento…
Um dos problemas que fazem com que, agora, o corte da dívida seja tão severo é que vai levar à redução do crescimento económico. E isso torna muito difícil amortizar a dívida. Por isso, como economista, acho que é preciso que os Governos ajam de uma forma mais cuidadosa e não apenas nervosamente devido à dimensão da dívida. Deviam esperar pelo momento certo para reduzir a dívida pública. A economia não é apenas a política certa, é também o tempo certo para aplicar aquela política.
Uma das consequências destes planos de austeridade é a redução dos salários, dos apoios aos desempregados e dos benefícios sociais em geral. Enquanto investigador da chamada “economia do bem-estar”, que impacto é que acha que estes planos terão nestes países?
Muitos destes programas de austeridade têm um impacto negativo no crescimento económico e no nível de confiança da economia. Não estou a dizer que qualquer tipo de medida de austeridade é má. Mas temos de ser inteligentes na escolha das medidas de austeridade. O problema é que os países, individualmente, podem não ter, neste momento, muita escolha devido à leitura que a União Europeia fez da situação e, sobretudo, devido aos mercados financeiros. Estes são muito guiados pelas agências de rating e estas agências, como sabemos, cometeram erros enormes durante a crise de 2008, mas estão agora de volta e muito poderosas.
Foi um dos apoiantes do Spinelli Group, criado no ano passado para retomar a defesa do federalismo da União Europeia.
Fui muito influenciado por Altiero Spinelli e pelas suas ideias sobre a União Europeia. Ele era o meu sogro, era padrasto da minha última mulher, Eva Colorni. Via-o todos os Verões.
Mas defende, portanto, essas ideias… Acha que a actual crise da dívida soberana veio dar-lhe razão e mostrar que a Europa precisa de ser mais do que uma união monetária?
Essa é a minha visão. Aliás, penso que a sequência que a Europa seguiu não foi a melhor. Teria sido melhor começar com uma unidade política antes de pôr tanto dinheiro na união. Temos uma situação em que as políticas orçamentais são totalmente diferentes, as políticas de impostos e as políticas de investimento também, o que cria muitos problemas. Criar uma união monetária sem união política é um erro.
O seu novo livro, A Ideia de Justiça, oferece uma nova visão alternativa às teorias da justiça dominantes que, diz, levaram o mundo no sentido errado. Porquê?
O meu novo livro é um livro de filosofia, uma maneira de pensar sobre os problemas, problemas da economia, da sociedade, da política e da democracia. O que defendo é que a melhor maneira de pensar sobre estes problemas reside no debate público e no raciocínio público. Pegando no que falámos antes sobre os planos de austeridade, acho que deveriam ser alvo de um maior debate, em vez de se deixar a discussão apenas nas mãos dos mercados financeiros e dos bancos. A discussão deve estar nas mãos do público. É preciso diálogo público e, claro, conhecimento técnico, inclusive de economistas. Muitos economistas são críticos em relação a estas realidades, não sou o único, pelo que o seu contributo seria importante nesta discussão que estamos a ter. Qualquer debate público que permita a ambos os lados falarem e ponha em consideração as suas visões é muito importante.
Acha que, actualmente, os banqueiros e o sistema financeiro controlam tudo?
Não estou a dizer que tudo está nas mãos dos banqueiros agora, mas sim que a voz dos banqueiros tem sempre atenção porque os mercados financeiros são muito importantes. No contexto do raciocínio público, tem de se ouvir o público em geral e o público especializado, incluindo economistas e outros especialistas que se mostraram cépticos quanto ao modo como a economia foi liderada durante várias décadas. As suas vozes foram negligenciadas no passado. Não estou a dizer que a minha voz foi negligenciada, porque a minha voz não é assim tão importante. Mas muitas pessoas têm vozes importantes e as suas ideias têm de ser muito mais ouvidas, discutidas e escrutinadas. O envolvimento no debate público é um aspecto central na prossecução da justiça, quer se trate de uma situação fácil, quer de uma situação difícil, como aquela que vivemos agora.
in Público a 16/03/2011