Conheci-te já lá vão uns 20 anos. Em Viseu. Ainda estavas longe do jogo inútil da fama e das hierarquias. Eu e mais alguns jovens camaradas, víamos-te como escritor, marginalizado e sem pensar no seu motivo. O motivo, todos o sabíamos, seria a tua militância no Partido Comunista Português.
Aceitaras o nosso convite para falares do teu mais recente livro. Naquela altura, ainda te publicavam sentindo que a ninguém roubava ou estorvava o ar dos teus livros.
Colocámos-te no centro do Rossio. No meio do silêncio e da gente. Diante do abismo da vida e o juízo dos beirões. Vinhas do sul e trazias um espelho de transparências livres e uma secreta herança de inteligência.
Como se fosse hoje, lembro-me desse teu rosto tatuado de grave intensidade, projectando os olhos altivos de uma estirpe – marcadamente severa, abandonada. E que talvez melhor do que ninguém, dá lucidez e força, emoção e caminho.
Muitos leitores e aspirantes a escritores, cada vez mais jovens, foram ocupando as cadeiras da esplanada que improvisaramos na praça. Ali chegavam de latitudes diferentes dos comunistas, com o único propósito de aprender o teu rigor.
Prontamente, começaste a usar palavras violentas, que abriam uma clara vertigem escondida. E, da tua boca, surgiam frases com movimentos lentos que estalavam na mente, com fulgor de beleza. Personagens solares como sorrisos resgatados de «Levantados do Chão», «O ano da morte de Ricardo Reis», «Memorial do Convento». Ou reflexões políticas que penetravam com um punhal de espanto em pleno cavaquistão. Estranhas histórias que passavam do mistério ao silêncio e que tu, descobrindo o seu sangue prisioneiro, transformavas depois em outras coisas que povoavam sonhos e visões que poucos puderiam entrever. Continuar a ler